10 de maio de 2020

A Flor da Felicidade


Até têm passado na televisão alguns filmes interessantes que lhe escaparam quando estrearam em sala, mas esta semana, para variar, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver em DVD um filme recente. A Flor da Felicidade, de Jessica Hausner (2019), é recente ao ponto de, inesperadamente, encontrarmos nele premonições sobre a actual pandemia, apesar de ter sido escrito e realizado antes de ser possível saber o que ia acontecer. Quem viu Amour Fou (2014), o filme anterior de Jessica Hausner, reconhecerá o tom estranhamente neutro e desligado com que as personagens de A Flor da Felicidade, à semelhança das marionetas de Kleist, parecem encarar a vida. Mas enquanto em Amour Fou as personagens resistiam através da ironia, em A Flor da Felicidade todas parecem entregar-se a uma felicidade dúbia. O enredo gira em torno de um laboratório que, através da manipulação genética, cria uma planta que exige cuidados e carinhos diários, mas de cuja flor emana um aroma que inspira felicidade. Uma das personagens suspeita, no entanto, de que o vírus usado como vector para a manipulação genética entrou em mutação e começou a contagiar as pessoas que inalam o pólen, transformando-as numa espécie de zombies felizes que tudo fazem para proteger as plantas, como “personagens de uma peça de teatro em que interpretam o seu próprio papel”. O uso de máscaras é recomendado, suscitando no espectador de 2020 uma sensação de déjà vu. As suspeitas em relação ao vírus nunca são totalmente esclarecidas, visto que só algumas personagens supostamente pouco fidedignas acreditam nessa possibilidade e as mudanças que ocorrem nas outras podem ter outras explicações. Para lá dos paralelos imprevistos com a situação actual, A Flor da Felicidade é uma meditação irónica sobre a felicidade, sobre a autenticidade das emoções humanas e sobre os efeitos de determinados fármacos como o Prozac. Além disso, aborda de modo complexo as ambivalências da maternidade – ironicamente, apesar de não ter disponibilidade para dar atenção ao seu próprio filho, a protagonista cria uma planta que exige cuidados quase maternos. O ambiente asséptico recorda Safe (1995), de Todd Haynes, outro filme muito referido a propósito desta pandemia. Apesar de os acontecimentos de A Flor da Felicidade serem frios e neutros, a ponto de parecerem inofensivos, esta atmosfera combina-se de modo dissonante com algumas convenções do filme de terror, como uma banda sonora arrepiante ou a expressão vazia das crianças. O Festival de Cannes chamou a atenção para esta característica ao distinguir a interpretação absolutamente contida e sem qualquer histrionismo de Emily Beecham com o prémio de melhor actriz. Não se pode dizer que A Flor da Felicidade seja um filme comovente e apaixonante, mas de certeza que não era esse o objectivo da realizadora. Neste filme, Jessica Hausner faz muitas coisas com pouco, explorando de modo complexo diferentes dimensões da natureza humana.