5 de julho de 2020

A Verdade


Visto no cinema, A Verdade (2019), de Hirokazu Kore-eda (conhecido entre nós principalmente graças a Shoplifters, de 2018), é um filme sobre uma actriz, Fabienne (Catherine Deneuve), e a relação desta com a sua carreira e com a sua filha, Lumir (Juliette Binoche). O facto de todas as personagens masculinas serem secundárias, mesmo a de Ethan Hawke (marido de Lubir), reforça a centralidade da protagonista, que é uma daquelas pessoas que, onde quer que estejam, conseguem que tudo gire sempre em torno delas. Quando pensamos em filmes em que a relação entre mãe e filha desempenha um papel importante, lembramo-nos imediatamente de Sonata de Outono (1978), de Ingmar Bergman. Em comparação com este, e apesar de a mãe do filme de Kore-eda também ser uma artista egocêntrica, antipática, absorvida pela carreira e para quem a arte sempre foi mais importante do que a vida, A Verdade é um filme onde a exploração do espectáculo das emoções negativas é residual, na medida em que as personagens principais, apesar de não se entenderem bem e de por várias vezes se envolverem em confrontos verbais, não têm discussões de vida ou de morte, ainda que fique bem claro que há questões complexas entre elas. Pensando no cinema de Almodóvar, outro cineasta para quem a figura da mãe é importantíssima, podemos até descrever A Verdade por contraste, como filme antimelodramático. (Não haverá, aliás, uma relação de eco entre o título Tudo sobre a Minha Mãe (1999), do realizador espanhol, e o título Recordações da Minha Mãe, do filme dentro do filme de Kore-eda?) O estatuto da verdade é outro dos temas principais deste filme. Lumir, argumentista nos Estados Unidos, regressa a França para celebrar a publicação do livro de memórias da mãe. Quando o lê, no entanto, conclui que a mãe, além de ter contado várias mentiras, suprimiu do relato pessoas importantes, como se estas nunca tivessem existido. Ao longo do filme, vamos percebendo, no entanto, que nem sempre as recordações da filha correspondem à verdade. Assim como a mãe é uma actriz que representa mesmo na vida e que usa tudo o que vive para alimentar a representação, a filha é uma argumentista de cinema, alguém habituado a manipular acontecimentos e diálogos, e que chega a escrever textos para a mãe e para a sua própria filha representarem na vida real, quando é preciso sensibilizar alguém para alguma coisa. Também o filme em que Fabienne participa, apesar de descrito como ficção científica, contém elementos que espelham a verdade da relação desta com Lumir, nomeadamente uma mãe que nunca envelhece e uma filha imperfeita. Como se depreende destas descrições, a estrutura de A Verdade é complexa, a ponto de deixar a impressão de que está sobrecarregada de elementos que, por não serem explorados a fundo, correm o risco de parecer decorativos e excedentários. Ainda assim, este filme, o primeiro da extensa filmografia de Kore-eda realizado fora do Japão, desencadeia uma reflexão interessante não só sobre a relação entre mãe e filha, ou sobre o estatuto da verdade, mas também sobre um dos temas que este cineasta mais gosta de trabalhar: as diferentes estratégias de sobrevivência a que as pessoas recorrem perante as dificuldades da vida.