Esta
semana – quem diria? – o Cinéfilo Preguiçoso foi ao cinema. O filme que
possibilitou esta ocasião foi Julieta
(2016), a vigésima longa-metragem de Pedro Almodóvar, inspirada pelos contos
«Chance», «Soon» e «Silence», de Alice Munro. O espectador sente-se em pleno
universo almodovariano logo nas cenas iniciais, quando a protagonista arruma
livros para levar numa viagem, com a angústia de quem não quer deixar para trás
nada de essencial à vida. Recorda-se imediatamente o momento de A Flor do Meu Segredo (1995) em que Leo
(Marisa Paredes) descreve as escritoras preferidas: as loucas, as doentes, as
suicidas, as alcoólicas... Apesar de Julieta
recuperar o interesse do realizador por personagens femininas fortes mas
entregues à dor, distingue-se da restante obra por uma abordagem mais
minimalista e menos estridente: não há discussões muito violentas, gritos e
lágrimas; as personagens sofrem em silêncio. Esta ausência de confrontos
verbais acaba, aliás, por ser o motor narrativo do filme, ao contribuir para
desencadear as tragédias que ocorrem – um suicídio, uma morte no mar e um
desaparecimento. A alienação e o mutismo da mãe da protagonista, vítima de
Alzheimer, dão corpo ao silêncio que vai minando a vida de todas as personagens.
Outro elemento interessante é o modo como Almodóvar trabalha a noção de que há
sentimentos que vão passando de geração em geração, através da repetição dos
mesmos erros e incompreensões. A falta de linearidade da estrutura temporal da
narração ilustra a repetição dos erros: Julieta recrimina-se por passar à filha
toda a culpa injustificada que sempre sentiu; os filhos desaparecem da vida dos
pais e só quando, por sua vez, perdem também um filho, percebem a dor que
causaram no passado ou continuam a causar. A actriz Rossy de Palma encarna uma
personagem sinistra, como um fantasma vindo dos primeiros filmes de Almodóvar. Alguns
dos momentos mais fortes e inesquecíveis do filme, porém, concentram-se na
belíssima sequência no comboio, quase onírica e tão hitchcockiana: um ramo que
bate na janela; um suicida que tenta conversar antes de pôr fim à vida; um
veado perdido na noite; o acidente que ninguém quer descrever.