8 de setembro de 2019

Dor e Glória


No filme Dor e Glória (Pedro Almodóvar, 2019), como acontece na maioria das vidas, há muita dor e pouca glória. É um filme claramente autobiográfico (ou de autoficção, se preferirmos), protagonizado por Antonio Banderas, que recebeu o prémio de melhor actor no Festival de Cannes pelo papel de Salvador Mallo, um realizador de cinema em crise e bloqueio criativo, sofrendo de achaques vários, quatro anos depois da morte da mãe. Já se fizeram muitos e memoráveis filmes sobre crises e impasses criativos, e este, um pouco à semelhança de All That Jazz (Bob Fosse, 1979), caracteriza-se pela ênfase na componente física associada à depressão e ao envelhecimento do protagonista: os pormenores concretos das insónias, enxaquecas, fotofobia, dores de costas, síndrome de Forestier e do abuso de drogas são explorados exaustivamente. É preciso salientar, no entanto, que, apesar da sua atenção obsessiva a estas dimensões e da sua pertença a esta família cinematográfica, Dor e Glória se distingue por ser um filme mais sobre uma saída da depressão e uma resolução do que sobre uma crise em si. Assim como, a propósito da Recherche de Proust, outra obra de autoficção, já se disse que, se o autor fosse precisamente como o narrador, nunca teria conseguido escrever aquele livro, também Almodóvar só poderia ter realizado Dor e Glória depois de já não ser bem como o protagonista, ou de já não ser o protagonista: as imagens finais do filme sublinham precisamente esta dissociação. Apesar da insistência na dor física e afectiva, Dor e Glória é um filme sobre a sua superação, alcançada pelo protagonista graças à sua capacidade de pôr ordem nas suas recordações, a alguns golpes do acaso e à força de vontade. Tem-se dito que se trata do filme mais confessional de Almodóvar; contudo, entre as recordações revisitadas em flashback, os momentos menos conseguidos, mais ingénuos ou mais sentimentais são aqueles em que se sente que há menos mediação artística – sobretudo os que têm a ver com a relação dele com a mãe. (É típico dos pais não terem os filhos que desejariam, tal como os filhos não têm os pais de que precisariam, mas cada um de nós tem de viver a sua própria vida.) Nos momentos mais interessantes, como os episódios relacionados com os reencontros do protagonista, por um lado, com Alberto, um actor com quem há muitos anos estava de relações cortadas e, por outro, com um ex-companheiro que por acaso assiste a uma peça em que se conta a história da relação de ambos, há uma reelaboração artística admirável. A encenação que Alberto faz de um texto autobiográfico do protagonista é uma figuração não só da presença do próprio Antonio Banderas em Dor e Glória, mas também da relação de Almodóvar com outros actores, como Carmen Maura ou Eusebio Poncela, que desempenharam papéis decisivos na sua obra, mas tiveram desentendimentos com o realizador. Dor e Glória talvez não seja um filme tão forte do ponto de vista melodramático como A Flor do Meu Segredo (1995), Em Carne Viva (1997) ou A Lei do Desejo (1987), mas é muito menos simples e menos estritamente autobiográfico e confessional do que parece, e está, sem dúvida, entre os mais importantes deste realizador.
  
Sobre o filme Julieta (Pedro Almodóvar, 2016).