No
filme Dor e Glória (Pedro Almodóvar, 2019), como acontece na maioria das
vidas, há muita dor e pouca glória. É um filme claramente autobiográfico (ou de
autoficção, se preferirmos), protagonizado por Antonio Banderas, que recebeu o
prémio de melhor actor no Festival de Cannes pelo papel de Salvador Mallo, um
realizador de cinema em crise e bloqueio criativo, sofrendo de achaques vários,
quatro anos depois da morte da mãe. Já se fizeram muitos e memoráveis filmes
sobre crises e impasses criativos, e este, um pouco à semelhança de All That
Jazz (Bob Fosse, 1979), caracteriza-se pela ênfase na componente física
associada à depressão e ao envelhecimento do protagonista: os pormenores
concretos das insónias, enxaquecas, fotofobia, dores de costas, síndrome de Forestier e do abuso de drogas são explorados exaustivamente. É preciso salientar, no entanto,
que, apesar da sua atenção obsessiva a estas dimensões e da sua pertença a esta
família cinematográfica, Dor e Glória se distingue por ser um filme mais
sobre uma saída da depressão e uma resolução do que sobre uma crise em si. Assim como, a propósito da
Recherche de Proust, outra obra de autoficção, já se disse que, se o
autor fosse precisamente como o narrador, nunca teria conseguido escrever aquele
livro, também Almodóvar só poderia ter realizado Dor e Glória depois de
já não ser bem como o protagonista, ou de já não ser o protagonista: as imagens
finais do filme sublinham precisamente esta dissociação. Apesar da insistência
na dor física e afectiva, Dor e Glória é um filme sobre a sua superação,
alcançada pelo protagonista graças à sua capacidade de pôr ordem nas suas
recordações, a alguns golpes do acaso e à força de vontade. Tem-se dito que se
trata do filme mais confessional de Almodóvar; contudo, entre as recordações revisitadas em flashback, os momentos menos conseguidos, mais
ingénuos ou mais sentimentais são aqueles em que se sente que há menos
mediação artística – sobretudo os que têm a ver com a relação dele com a mãe.
(É típico dos pais não terem os filhos que desejariam, tal como os filhos não
têm os pais de que precisariam, mas cada um de nós tem de viver a sua própria
vida.) Nos momentos mais interessantes, como os episódios relacionados com os
reencontros do protagonista, por um lado, com Alberto, um actor com quem há
muitos anos estava de relações cortadas e, por outro, com um ex-companheiro que
por acaso assiste a uma peça em que se conta a história da relação de ambos, há
uma reelaboração artística admirável. A encenação que Alberto faz de um texto
autobiográfico do protagonista é uma figuração não só da presença do próprio
Antonio Banderas em Dor e Glória, mas também da relação de Almodóvar com
outros actores, como Carmen Maura ou Eusebio Poncela, que desempenharam papéis decisivos
na sua obra, mas tiveram desentendimentos com o realizador. Dor e Glória
talvez não seja um filme tão forte do ponto de vista melodramático como A
Flor do Meu Segredo (1995), Em Carne Viva (1997) ou A Lei do
Desejo (1987), mas é muito menos simples e menos estritamente
autobiográfico e confessional do que parece, e está, sem dúvida, entre os mais
importantes deste realizador.
Sobre o filme Julieta (Pedro Almodóvar, 2016).
Sobre o filme Julieta (Pedro Almodóvar, 2016).