20 de novembro de 2022

Diário de Um Romance Passageiro

No cinema francês é costume falar-se muito. Tem sido uma característica imutável, de Renoir a Desplechin, passando por Rohmer, Pialat e muitos outros. No cinema de Emmanuel Mouret fala-se ainda mais, se possível, do que na esmagadora maioria dos filmes franceses contemporâneos. Essa prolixidade é muito mais do que uma questão de palavras por minuto de película: em Mouret, a comunicação verbal entre as personagens sobrepõe-se ao enredo e serve de contraponto a acções que não são mostradas ou que ficam por praticar. Em Diário de Um Romance Passageiro (2022), estreado recentemente nas salas portuguesas, as duas personagens principais passam quase todo o tempo a falar. Os diálogos servem para os protagonistas se conhecerem, depois do encontro fortuito numa festa, e permitem a sua aproximação sentimental, mas têm o efeito secundário de os desencorajarem de irem mais longe na sua relação, como se o fluxo verbal se convertesse em sucedâneo da acção ou da decisão que seria necessária para transformar uma ligação supostamente passageira num compromisso mais sério. Há momentos em que os desejos e receios não verbalizados parecem prestes a vir ao de cima. Mouret assinala-os de forma muito explícita, recorrendo a pausas estratégicas no fluxo verbal ou a grandes planos súbitos. São estratagemas formais pouco originais, próprios de um cineasta que não está obcecado com a inovação. Bem pelo contrário, ao longo da sua carreira, Mouret tem adoptado um registo clássico, mas apurando a arte de levar esse registo a extremos de requinte e complexidade, por detrás de uma aparência de banalidade. Isto seria impossível sem a participação de actores de excelência. Neste filme, em que há uma curiosa troca de papéis associados ao imaginário masculino e feminino, os protagonistas são interpretados por Sandrine Kiberlain, uma das actrizes mais inteligentes da sua geração, e por Vincent Macaigne, que tem vivido muito da sua persona desajeitada, desgraciosa e dada a caprichos, mas que apresenta aqui um desempenho contido e plenamente convincente. Emmanuel Mouret é um dos realizadores franceses no activo mais interessantes. É bom constatar que as suas obras vão tendo visibilidade em Portugal. Dos filmes do início da sua carreira, muitas vezes com o próprio realizador no papel principal, marcados pela pseudoingenuidade e por um sentido de humor minimalista, até aos mais recentes, cada vez mais depurados, Mouret propõe uma crónica subtil das confusões e contradições sentimentais que a vida em sociedade produz. De certo modo, todos os seus filmes poderiam intitular-se, como o anterior a este, As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020), já que todos exploram a interacção conflituosa dos gestos e as palavras, que, no fim de contas, é a matéria-prima do cinema.
 
Outros filmes de Emmanuel Mouret no Cinéfilo Preguiçoso: As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (2020), Caprice (2015).