6 de novembro de 2022

Frère et Sœur

A Festa do Cinema Francês vai na 23.ª edição. O Cinéfilo Preguiçoso acha que este evento poderia ser mais atraente se a escolha dos filmes se baseasse na qualidade e na originalidade – e menos numa lógica de representatividade que gera uma programação bem distribuída por géneros, mas deixando de fora alguns dos cineastas franceses mais interessantes. Há excepções, contudo: em particular, qualquer filme de Arnaud Desplechin. Em Frère et Sœur (2022), depois de alguns filmes recentes um pouco afastados do seu registo, reencontramos temas habituais na carreira deste realizador, como os conflitos familiares e o mundo do teatro. O eixo principal do enredo é a relação de ódio e afastamento radical entre dois irmãos: Alice, uma actriz (Marion Cotillard), e Louis, um escritor (Melvil Poupaud). Apesar de o filme incluir numerosos flashbacks, o motivo deste ódio nunca é explicado. O cinema está repleto de enredos sobre rivalidades e disputas no seio familiar, mas é raro que as motivações não sejam reveladas. Livres da necessidade de darem explicações, os argumentistas (Julie Peyr e o próprio Desplechin) constroem um filme que se desenvolve num plano quase abstracto, com aproximações fugazes à mitologia, à tragédia e a tabus religiosos. Mostrar motivos para a hostilidade entre Alice e Louis poderia satisfazer cognitivamente o espectador, mas, quase inevitavelmente, diluiria a impressionante intensidade deste filme. Essa intensidade sente-se desde a cena inicial: o velório do filho de Louis, uma das tragédias que, a par da lenta agonia dos pais do par protagonista, vítimas de um acidente de viação, fornece um contraponto trágico à frivolidade da zanga entre os irmãos. Esse contraponto, aliás, é aqui uma constante, e também isto é típico de Desplechin, que não só gosta de incluir pormenores burlescos para evitar que a gravidade faça soçobrar os seus filmes, como também o faz com uma inteligência notável. Outra imagem de marca do realizador é a tendência para adoptar um tom menor e aplicar cortes bruscos nas cenas que, nas mãos de outro, seriam tratadas com solenidade e dramatismo, e provavelmente redundariam em pathos gratuito. Mais do que contar uma história, Frère et Sœur mostra-nos um grupo de personagens com percursos de vida trilhados ao sabor de caprichos, energia vital descontrolada e egoísmos. O ódio nasce e desvanece-se, há uma reconciliação, mas sem que este trajecto coincida com uma evolução moral compatível com aquilo que a sociedade, e o cinema, consagram como convencional. Desplechin prefere estar atento à energia vital e às contradições das suas personagens a servir-se delas para construir narrativas dotadas daquela solidez edificante que muitos dos seus pares visam – entre os quais muitos realizadores representados na Festa do Cinema Francês. Frère et Sœur é um dos melhores filmes dos últimos vinte anos de um dos maiores cineastas contemporâneos.
 
Outros filmes de Arnaud Desplechin no Cinéfilo Preguiçoso: Trois Souvenirs de ma Jeunesse (2015), Os Fantasmas de Ismaël (2017), Roubaix, Misericórdia (2019), Traições (2021).