A nostalgia cinéfila é um filão abundante, como aliás se tem constatado neste espaço. Depois de ver várias ficções, mais ou menos autobiográficas, sobre a memória do cinema, o Cinéfilo Preguiçoso interessou-se pelo documentário Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, estreado recentemente. O realizador estabelece um paralelo entre um espaço pessoal (a casa familiar no Recife) e vários espaços colectivos, porém fortemente associados a memórias pessoais (as salas de cinema dessa mesma cidade, desaparecidas ou radicalmente transformadas). A coerência entre estes dois pólos é assegurada pelo facto de a casa ter sido o cenário de muitos dos filmes da primeira fase da carreira deste realizador, incluindo Aquarius (2016) e O Som ao Redor (2012). Ficamos a conhecer a casa graças a imagens do arquivo pessoal do cineasta, mas também a cenas desses filmes e a curtas reconstruções ficcionadas, numa mise en abyme que reforça a ideia da fluidez das fronteiras entre recordações, realidade e histórias filmadas. Numa das cenas mais conseguidas, Mendonça Filho descreve uma ocasião em que, quando estava em casa, estranhou ouvir o ladrar de um cão dos vizinhos que tinha morrido muitos anos antes, até perceber que o som provinha da televisão em que passava um dos seus filmes. A secção de Retratos Fantasmas dedicada à recensão e evocação dos cinemas do centro do Recife tem um formato mais clássico: não faltam as imagens de arquivo, a exploração do contraste entre o esplendor do passado e a degradação presente, bem como uma entrevista comovente com um projeccionista. A relação com a primeira parte do filme é clara: a formação do cineasta passa tanto pela exploração da casa enquanto cenário como pela sua passagem pelas salas de cinema. Mendonça Filho evita o sentimentalismo fácil em que muitos outros realizadores caem – enquanto estes apelam à memória colectiva dos espectadores, ele não se afasta de um percurso narrativo e evocativo muito pessoal. O espectador pode rever-se nesse percurso, mas não existe aqui, felizmente, aquele movimento do particular para a experiência colectiva, à procura de uma catarse consensual e saudosista. O denominador comum de todas as facetas deste filme são os fantasmas mencionados no título: vozes, pessoas, lugares e experiências que deixaram de existir, mas subsistem na memória dos vivos e nos filmes. Quando os próprios filmes, ou as ocasiões ou os lugares apropriados para os vermos, desaparecem, resta-nos tentar fazer perdurar a memória desse processo irreversível de perda. Retratos Fantasmas termina com um magnífico e surpreendente episódio ficcional, em jeito de epílogo. A história do motorista da Uber com o dom da invisibilidade funciona como eco perfeito da ideia central do filme. O desaparecimento literal do motorista dá, em retrospectiva, outra vivacidade aos numerosos desaparecimentos a que assistimos durante a hora e meia anterior e transporta-nos para os terrenos do cinema fantástico, onde tudo pode acontecer, incluindo a anulação dos efeitos do tempo.
Outros filmes recentes inspirados
pela nostalgia do cinema: Babylon (Damien Chazelle, 2022); Os Fabelmans (Steven
Spielberg, 2022); Império da Luz (Sam Mendes, 2022).