8 de janeiro de 2023

Os Fabelmans

Steven Spielberg afirmou que o impulso para realizar Os Fabelmans (2022) surgiu durante o isolamento imposto pela pandemia: a paragem forçada compeliu-o a interrogar-se sobre qual o projecto que, entre os que mantinha em suspenso, gostaria verdadeiramente de levar avante. A resposta foi esta exploração autobiográfica dos anos de infância, adolescência e primeira idade adulta de um jovem, Sammy Fabelman, que descobre o fascínio pelo cinema e dá os primeiros passos como cineasta. Apesar de os nomes serem diferentes, os pormenores biográficos são muito fiéis à biografia de Spielberg, incluindo as mudanças de casa ao sabor do percurso profissional do pai (Burt Fabelman, inspirado pelo engenheiro informático Arnold Spielberg e interpretado por Paul Dano), a influência da mãe (Mitzi Fabelman, inspirada pela pianista Leah Adler e interpretada por Michelle Williams) e o divórcio dos pais. O filme começa com a primeira ida ao cinema do protagonista, para ver The Greatest Show on Earth (1952), de Cecil B. DeMille, que exerce uma profunda influência na imaginação de Sammy – sobretudo a cena do acidente ferroviário, que ele depois reproduz e filma obsessivamente, na sua pista de comboios. A última cena de Os Fabelmans mostra-nos Sammy a receber conselhos de realização algo crípticos, vociferados por David Lynch, na pele de John Ford. Entre estes dois momentos, desenrola-se uma longa aprendizagem, em que Sammy vai percebendo o poder que as imagens em movimento têm para interrogar a realidade, encantar, chocar e manipular o público – consciência de que Spielberg se serviu para se tornar um dos realizadores mais populares do mundo. O filme explora alguns temas já profusamente glosados no cinema, como o bullying no liceu, o antissemitismo e o conflito geracional, mas raramente cai em lugares-comuns óbvios. Destaca-se pelo equilíbrio e pela inteligência do argumento, pela complexidade das personagens e pela dinâmica entre Sammy e uns pais pouco convencionais, marcada pelos atritos entre as personalidades artística da mãe e prática/analítica do pai. É também notável a maneira como as dimensões físicas e técnicas da realização são ilustradas: Sammy descobre rapidamente que não basta ter ideias bonitas e storyboards – a dada altura, é preciso ir para o terreno, lidar com a inadequação dos actores e com as limitações de orçamento, e no final, no seu quarto de adolescente, montar à mão a película de 8 milímetros. Este processo de montagem artesanal é evocado, em plena era digital, com precisão e uma ausência de sentimentalismo nostálgico que talvez seja a maior virtude do filme. A contenção emocional de Os Fabelmans contrasta com o sentimentalismo excessivo que contamina algumas obras de Spielberg. É interessante constatar que o autor de E.T. – O Extraterreste (1982) e A Lista de Schindler (1993) mostra contenção precisamente naquele que é um dos seus projectos mais pessoais. Note-se, aliás, que é o primeiro filme em que Spielberg participa no argumento desde A. I. Inteligência Artificial (2001), e apenas o quarto da sua carreira em que isso acontece. O co-argumentista é Tony Kushner, seu colaborador de longa data. Talvez a aliança entre o investimento pessoal e uma parceria com um argumentista experiente tenha sido o ingrediente decisivo para o sucesso do filme – sucesso artístico e crítico, diga-se, uma vez que as receitas de bilheteira têm sido decepcionantes. Parece que o público acha mais piada a monstros pré-históricos e acrobacias de exploradores destemidos do que à introspecção e aos exercícios de regresso às origens.