30 de junho de 2024

Aquele Inverno em Veneza

Visto no Filmin por ocasião da morte do actor Donald Sutherland, Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973) é um filme que não se recomenda a quem tencione visitar esta cidade em breve. Veneza figura como um lugar inóspito, labiríntico, escuro, povoado de personagens suspeitas e talvez perigosas, com componentes degradadas e susceptíveis de desmoronamento, que sugerem que a morte está à espreita em cada esquina. Baseado na novela Don’t Look Now, de Daphne du Maurier, o filme acompanha a história de um casal (Donald Sutherland e Julie Christie) que, ainda a recuperar da morte de uma filha pequena, se instala nesta cidade onde o marido, que é arquitecto, irá supervisionar o restauro de uma igreja. Apesar de certos elementos com sabor datado (nomeadamente um certo espalhafato no modo como a personagem da vidente é retratada, ou a vertente algo kitsch da banda sonora de Pino Donaggio), Aquele Inverno em Veneza reúne várias características que contribuíram para que se tornasse um clássico de culto. Obviamente, o carácter sincopado da montagem, da responsabilidade de Graeme Clifford, é decisivo para criar uma atmosfera de tensão, preocupação e ansiedade no limiar do filme de terror, mas sem atravessar essa fronteira. Os cortes e os avanços e recuos no tempo instalam um ritmo que se articula com a ideia de que o protagonista tem o dom de prever o futuro – embora lhe resista e manifeste cepticismo em relação a premonições, ao contrário da mulher. Ao mesmo tempo, transmitem a sensação de que não só tudo é breve e instável como também qualquer momento de despreocupação pode subitamente transformar-se no seu contrário. A famosa sequência em que as imagens do casal na cama são entrecortadas por outras, em que as mesmas personagens já se vestem para sair, ilustra bem esta ideia. Outro elemento marcante é o carácter preponderante e inusitado do vermelho, uma cor que contrasta com os tons lúgubres das fachadas de Veneza e vai salpicando os planos, parecendo – desde a sequência inicial do filme, em que ocorre a morte da filha – dotada de uma agencialidade superior à das personagens. Aquele Inverno em Veneza é, além disso, uma representação visual do que é fazer o luto por alguém. No início, a personagem feminina parece mais frágil do que a masculina, mas vamos percebendo gradualmente que, na verdade, é a segunda que está em risco, apesar da sua atitude forte e sensata. Ironicamente, o maior perigo que John enfrenta está, não na cidade, mas dentro dele: a sua própria pulsão de morte e a vontade de se autopunir pela morte da filha obrigam-no a ir encontro do seu fim. Donald Sutherland, com uma expressão de perplexidade permanente, de quem não percebe o que lhe está a acontecer, é uma escolha essencial para o filme, como também virá a ser, pelos mesmos motivos, no Casanova de Fellini (1976). No fim de Aquele Inverno em Veneza, percebemos que os meandros e as entranhas fantasmagóricas da cidade correspondem afinal ao interior da cabeça do protagonista, por onde a dor vagueia, perdida, sem encontrar a saída, talvez até sem querer sair.

Outros filmes em Veneza: Summertime (David Lean, 1955); Eva (Joseph Losey, 1962); Giro Turistico senza Guida (Susan Sontag, 1983).

23 de junho de 2024

Don Juan

O cinema francês é fértil em realizadores que, à margem do mainstream e alheados do círculo de auteurs reconhecidos pelo cânone e pelos festivais, vão, com o correr dos anos, construindo um percurso original e discreto. À falta de fama, atraem a atenção de críticos e de pequenas legiões de fãs cinéfilos. Noutro país, teriam sorte se conseguissem realizar uma longa-metragem. Tratando-se de França, com a sua longa tradição de simpatia pelos artistas marginais e esdrúxulos, além de uma multiplicidade de fontes de financiamento, vão deixando uma filmografia robusta. O Cinéfilo Preguiçoso, que até agora só conhecia Serge Bozon de nome, inclina-se para o incluir na linhagem de Paul Vecchiali, Luc Moullet ou Jean-Claude Biette. Don Juan (2021), sexta longa-metragem de Bozon, parte de uma ideia simples: retratar o sedutor como um pobre diabo que, longe de conquistar as mulheres com os seus encantos, é abandonado no dia do casamento e se entrega a abordagens românticas canhestras na ressaca desse desgosto. Este pobre diabo, Laurent (Tahar Rahim) é um actor que prepara precisamente o papel de Don Juan na peça de Molière, o que propicia numerosas ocasiões para paralelos ou conflitos entre o palco e a vida real: Jacques Rivette não anda longe, assim como Christophe Honoré – também há canções, que irrompem quando menos se espera e são interpretadas pelos próprios actores. Don Juan explora várias ideias, como as semelhanças entre a sedução e a representação, ou a sucessão de conquistas amorosas como procura da mulher ideal (Virginie Efira desempenha o papel de Julie, noiva de Laurent, mas também de todas as mulheres que ele assedia). Nenhuma destas ideias é muito desenvolvida ou trabalhada no sentido de uma conclusão. É um filme sereno e livre, que parece movido essencialmente pelo prazer lúdico de responder a perguntas que começam com «E se…?». Apesar de transmitir a impressão de ser realizado com sobriedade e economia de meios, deixa espaço para a intromissão de elementos aparentemente acessórios, como a personagem que encarna o Comendador da peça de Molière (o cantor Alain Chamfort), pai de uma rapariga morta abandonada outrora por Laurent; uma excursão à praia que sugere um improvável futuro de felicidade conjugal entre Laurent e Julie (até de filhos se fala); perguntas ingénuas e certeiras de alunos de teatro sobre a sedução e o que sentem aqueles que seduzem ou são seduzidos. No final, Julie, que faz lembrar a mulher que viveu duas vezes de Hitchcock, abandona Laurent pela segunda vez. Don Juan não é um daqueles filmes em que as personagens aprendem com a experiência. Laurent é um actor que, no exercício da sua vocação, não resiste à tentação de olhar para os outros com a intensidade do sedutor, que é também a intensidade daquele que tenta entrar na intimidade de uma personagem. Isto augura um futuro de excelência artística e sucessivos desgostos amorosos.

16 de junho de 2024

A Quimera

Na primeira cena de A Quimera (Alice Rohrwacher, 2023), Arthur (Josh O’Connor) acorda num compartimento de comboio que partilha com umas personagens femininas de ar invulgar, que lhe lembram efígies etruscas. A suspeita sobre a vertente fantasmagórica do protagonista instala-se logo aqui. Não sabemos bem se Arthur está vivo; nunca está parado; não encaixa bem em lado nenhum. É um arqueólogo com um talento sobrenatural para identificar a localização de túmulos etruscos subterrâneos em que os mortos têm uma espécie de enxoval que os acompanhará na outra vida. Quando Arthur sente o mal-estar que indica a presença de um túmulo, a imagem vira-se ao contrário, como se os espectadores tivessem acesso ao seu modo de ver. As aventuras de Arthur com o grupo de ladrões de túmulos de que faz parte são entrecortadas por recordações de Beniamina, sua parceira desaparecida. A Quimera não é um filme narrativo. Depois da morte, não há narrativa, só ausência de coordenadas temporais. Se há histórias neste filme, terão de ser os espectadores a compô-las a partir do caos das conversas circunstanciais, das expressões das personagens, de pormenores inesperados, dos frescos desmaiados nas casas, das folhas caídas nas florestas, dos objectos roubados e das canções através das quais o grupo de ladrões se retrata. Em muitos momentos, sentimos uma espécie de sobrepovoamento dos planos, com um excesso de sons e detalhes. Rohrwacher compara Arthur com um herói mitológico, na medida em que, em vez de psicologia, tem um destino – talvez os espectadores que o acompanhem no seu imprevisível percurso em direcção às trevas possam aprender com ele alguma coisa sobre si próprios. Com ele, a realizadora leva a cabo o seu próprio percurso pelo cinema italiano e pela história do seu país, não hesitando em apropriar-se de certos elementos arqueológicos do cinema de Fellini, Rossellini e até Pasolini, para realizar um filme sombrio e absolutamente pessoal e único. Já se falou da possibilidade de A Quimera formar uma espécie de trilogia com os anteriores O País das Maravilhas (2014) e Feliz como Lázaro (2018), mas a realizadora prefere compará-los com o tríptico  de um altar. Os três filmes têm em comum o retrato de um grupo ou família, que, à margem da sociedade, se entrega a actividades invulgares. O Cinéfilo Preguiçoso escreveu sobre os filmes anteriores de Rohrwacher em tom de elogio convicto, mas é preciso dizer que A Quimera se distingue pela riqueza visual e pela liberdade com que segue o percurso errático de Arthur e das outras personagens, entre as vicissitudes do quotidiano, as numerosas camadas de história e a memória cinéfila.

9 de junho de 2024

Showing Up

Numa entrevista, Kelly Reichardt declarou que gosta de encarar cada filme como um novo desafio, sem preocupações de continuidade estilística ou temática com os anteriores, apesar de se manter fiel à sua equipa de colaboradores, com destaque para o argumentista Jon Raymond. Isto reflecte-se na sua filmografia, na qual seria difícil encontrar uma linha condutora ou temas dominantes. Uma das expressões que o Cinéfilo Preguiçoso usou em artigos sobre filmes anteriores de Reichardt foi “tom menor”. A recusa de pontos altos e da grandiloquência – provavelmente o traço mais distintivo desta cineasta – é mais evidente do que nunca em Showing Up (2022). A personagem principal, Lizzy (Michelle Williams), é uma escultora que prepara uma exposição, enquanto tem de lidar com uma miríade de problemas, alguns bastante comezinhos: o trabalho administrativo numa escola artística dirigida pela mãe, o bizarro casal que ocupa a casa do pai, a saúde mental do irmão, a falta de água quente e a saúde de um pombo que foi atacado pelo seu próprio gato. No meio das peripécias mais ou menos cómicas que estes problemas suscitam, o trabalho artístico de Lizzy é mostrado com uma discrição extraordinariamente bem conseguida. Os gestos de moldar, pintar e cozer as figuras de barro são intercalados com os gestos da vida quotidiana. Apesar da fluidez do trabalho de câmara e do argumento, nunca deixamos de sentir que a fronteira entre estes dois domínios existe e se mantém graças à força de vontade e ao autodomínio da protagonista. Showing Up está nos antípodas dos filmes que mostram os artistas como génios turbulentos que cortam as amarras que os ligam ao mundo e ficam à espera de que a inspiração os visite. O mundo está demasiado presente na vida de Lizzy e há demasiadas coisas a solicitarem os seus cuidados para que ela se possa dar a esse luxo. As estatuetas que cria nunca são filmadas de forma glamorosa, com a reverência devida a uma obra de arte: limitam-se a ocupar as porções de plano que lhe competem, entre os corpos e os movimentos daqueles que se aproximam delas. Há até uma que, por ter ficado demasiado tempo no forno, está queimada de um dos lados, mas não deixa por isso de integrar a exposição. Graças a essa materialidade, sugerida com tanto comedimento e desassombro, as peças adquirem um grande poder dramático nas cenas finais: à falta de manifestações de satisfação por parte de Lizzy, demasiado ocupada com os problemas da família, é a obra feita que exprime o sucesso do seu trabalho. Por se tratar de uma realizadora dada a recomeços, parece pouco razoável tentar descrever Showing Up como o culminar de um percurso, apesar de, provavelmente, ser o filme mais conseguido de Reichardt. Adivinha-se que a sua carreira futura continuará a registar passos em falso e momentos de excelência e que cada novo filme será como um território virgem que o espectador é convidado a explorar.
 
Outros filmes de Kelly Reichardt no Cinéfilo Preguiçoso: Certain Women (2016), First Cow (2019).