5 de setembro de 2021

O Segredo da Câmara Escura | First Cow

Um dos prazeres dos cinéfilos que as pandemias e plataformas de streaming prejudicam gravemente é a surpresa de encontrar filmes interessantes em sítios ou horários ligeiramente inesperados. Foi o que aconteceu recentemente ao Cinéfilo Preguiçoso. O Segredo da Câmara Escura (Kiyoshi Kurosawa, 2016) escapava-lhe desde 2016, mas num dia destes passou nada mais, nada menos do que na CMTV. Por sua vez, First Cow (Kelly Reichardt, 2019) estreou há alguns meses em Portugal, mas foi só numa sessão do Nimas ao meio-dia num domingo que o Cinéfilo Preguiçoso o conseguiu ver. Em O Segredo da Câmara Escura conta-se a história de um fotógrafo de moda famoso, mas obcecado com a morte da mulher, que usa a filha como modelo para criar daguerreótipos, uma técnica antiga que obriga quem é fotografado a ficar imóvel durante muito tempo. O filme oscila entre duas dimensões que nunca consegue harmonizar eficazmente. Por um lado, temos uma atmosfera próxima do filme de terror, género a que o realizador está bem habituado, com uma casa decrépita e labiríntica, um estúdio de fotografia sombrio, uma estufa antiga, vultos estranhos percorrendo os espaços, mentiras, coexistência de mortos e vivos; por outro, cultiva-se um registo realista, com um drama em que intervêm consultores imobiliários que querem comprar a mansão do fotógrafo. É um filme frio, que parece incapaz de penetrar e explorar não só o ardor das personagens mas também a ideia de eternidade que estas pretendem alcançar através das imagens. Quanto a First Cow, baseado no romance The Half-Life, de Jonathan Raymond, explora um episódio em torno da primeira vaca transportada para a região do Oregon, na década de 1820, a pedido de um chefe de entreposto inglês que sentia falta de leite no chá. Narrado em tom aparentemente menor, este fait-divers é o ponto de partida para um estudo do período de exploração do Oeste americano. Esta época costuma ser descrita em tom épico e heróico, mas Reichardt não cai nessa armadilha e prefere prestar atenção a anti-heróis, personagens supostamente insignificantes que se esforçam por sobreviver entre o caos, as terras inóspitas e a ganância e violência humanas. Alguns críticos chamaram a atenção para os paralelos que é possível traçar entre a sociedade retratada no filme, onde não existe uma verdadeira noção de comunidade e as pessoas protegem apenas os seus interesses individuais, e a sociedade americana contemporânea. A colaboração entre Reichardt e Raymond, como argumentista ou autor de textos adaptados pela realizadora, tem sido uma constante, dando origem a filmes como Old Joy (2006), Wendy and Lucy (2008), O Atalho (2010) e Night Moves (2013). A atenção à natureza, o ritmo lento e o tom menor de First Cow aproximam-no bastante de Old Joy, talvez o seu melhor filme, sendo também três das características que distinguem e tornam única a obra de Reichardt, sobretudo dentro do cinema americano, mas também fora dele. Por estes motivos, First Cow é uma experiência cinematográfica invulgar, apesar de ter alguns pontos fracos, como uma dimensão narrativa demasiado ilustrativa e o carácter rudimentar e grosseiro da maior parte das personagens. Um factóide, para terminar: este é o trecentésimo post do Cinéfilo Preguiçoso; de modo algum desperdiçaríamos a oportunidade de usar este numeral ordinal tão injustamente ignorado por aí.

Ler também: Certain Women (Kelly Reichardt, 2016).