O Cinéfilo Preguiçoso já conhecia o conto “Unguided Tour” de Susan Sontag (1933-2004), mas, até ler uma referência no livro Suppose a Sentence, de Brian Dillon, na secção em que se comenta uma frase do conto, nada sabia do filme Giro Turistico senza Guida (em inglês, Unguided Tour aka Letter from Venice), realizado pela própria autora em 1983 e disponível no YouTube. Considerado por muitos um dos melhores contos de Sontag, “Unguided Tour” é uma espécie de apanhado de comentários e diálogos trocados durante uma viagem por um casal em fim de relação, relatados a uma terceira pessoa, que às vezes intervém. É um texto fragmentário, que explora lugares-comuns turísticos, interrompidos de vez em quando por reflexões mais pessoais, sobre viagens, o passado, a memória e a melancolia. Enquanto no conto o cenário não é identificado com clareza, embora haja bastantes referências a elementos típicos de Itália, o filme situa as personagens em Veneza e usa apenas uma parte do texto de origem, acrescentando alguns comentários relacionados com esta cidade. Durante grande parte do filme, no entanto, a câmara de Sontag parece interessar-se pelos elementos menos turísticos de Veneza, explorando antes coisas quotidianas: pombos, sacos do lixo, grupos de turistas, rapazes a jogarem futebol numa praceta, obras na fachada de uma casa; também a luz veneziana está ausente – os dias estão sempre nublados. Só antes do fim temos imagens mais turísticas, numa secção dedicada aos leões de Veneza. Por este espaço, sem enredo e sem mapa, move-se o casal em crise, interpretado por Lucinda Childs (bailarina e coreógrafa com quem Sontag na altura tinha uma relação) e Claudio Cassinelli (actor italiano), ao som da água dos canais e das palavras da personagem feminina, de vez em quando interpelada por uma interlocutora. Brian Dillon diz que este filme lhe lembra as imagens de Suite Vénitienne de Sophie Calle, mas ao Cinéfilo Preguiçoso pareceu sobretudo uma versão desinspirada de India Song (1975), de Marguerite Duras (filme que, aliás, tem um duplo/sequela intitulado Son Nom de Venise dans Calcutta Désert, 1976). Como Duras, Sontag tenta explorar tanto a desconexão entre palavras, imagens e sons como uma certa artificialidade coreográfica, mas falta-lhe a intensidade emocional de Duras. Além disso, o facto de o filme fragmentar um texto de partida já de si fragmentário pode causar estranhamento ou distanciamento aos espectadores que não estejam familiarizados com o conto; em contraste, India Song baseia-se no notável Le Vice-Consul, um texto com uma coerência e uma espessura dramática que permitem aventuras formais na adaptação sem com isso alienar o espectador. Em si mesmo, Giro Turistico senza Guida não é um filme memorável, na medida em que pouco acrescenta ao espectador, mesmo que este tenha interesse em quase tudo o que se possa dizer e mostrar sobre Veneza. Ressalve-se, no entanto, que a experiência de ver o filme se torna mais estimulante se o articularmos com o conto de Sontag e tomarmos em consideração a personagem e a vida da sua autora e realizadora, que foi uma das figuras mais carismáticas e marcantes da cultura americana do século XX.
O Cinéfilo Preguiçoso regressará em 2021, se o mundo ainda existir. Boas festas para todos.