27 de janeiro de 2019

Wolfsburg


Por coincidência, na semana da estreia de Em Trânsito (2018), de Christian Petzold, filme sobre o qual o Cinéfilo Preguiçoso escreveu em Novembro do ano passado, passou na Cinemateca a segunda longa-metragem deste realizador: Wolfsburg (2003). Nos filmes deste cineasta alemão, é comum vermos ambientes banais, filmados de forma neutra e realista, mas povoados por personagens que escondem segredos, episódios comprometedores ou identidades secretas. Em Wolfsburg, o enredo centra-se na personagem de Philipp (Benno Fürmann), um vendedor de automóveis que atropela e abandona uma criança. Neste drama relativamente realista impõe-se, no entanto, uma atmosfera de estranheza quando este protagonista se aproxima da mãe (Laura/Nina Hoss) do rapaz atropelado, acabando por salvá-la quando esta se tenta atirar de uma ponte (numa cena que deve muito a Vertigo – num filme que, aliás, deve muito a Hitchcock na maneira como explora o tema da culpa) e envolvendo-se depois romanticamente com ela. Heinrich von Kleist pode também ser apontado como padrinho espiritual deste filme: a incapacidade de Laura para reconhecer em Philipp o homem que matou o seu filho faz lembrar a incapacidade da Marquesa de O, na novela homónima, de perceber que o conde que a salvou e pediu em casamento é a mesma pessoa que a violou quando estava inconsciente, como se a coexistência da bondade e da maldade na mesma pessoa fosse cognitivamente inadmissível. Estas filiações podem ser exploradas até à exaustão ou ignoradas, sem que o filme se ressinta disso: Petzold é demasiado inteligente para ser refém das citações. É interessante comparar Wolfsburg com alguns filmes posteriores de Petzold que o Cinéfilo Preguiçoso já comentou, como Yella (2007), Barbara (2012), Phoenix (2014), além do já referido Em Trânsito (2018). Existem muitas semelhanças no estilo, mas é notório que, ao longo da carreira, Petzold foi descobrindo maneiras de complexificar e densificar os enredos e a psicologia das personagens sem abdicar de uma simplicidade e de um despojamento aparentes, que contribuem para acentuar uma impressão de irrealidade que por vezes remete para narrativas fantasmagóricas ou para o universo das fábulas. Wolfsburg pode parecer excessivamente linear em comparação com filmes mais tardios, mas não lhe faltam motivos de interesse e seria injusto ver nele um mero esboço do que estava para vir. Enquanto Em Trânsito é um filme quase coral, se tivermos em consideração a multiplicidade de vozes, perspectivas e tempos que explora, Wolfsburg é um filme depurado e intenso que se concentra no mistério de duas personagens ligadas por algo que devia separá-las.