9 de fevereiro de 2020

Mulherzinhas


Visto no cinema, Mulherzinhas (Greta Gerwig, 2019) é uma adaptação inteligente do livro com o mesmo título de Louisa May Alcott (1832-1888), conterrânea e contemporânea de Thoreau e Emerson. Em relação a outras adaptações do mesmo livro, o filme de Gerwig distingue-se por prestar mais atenção não só à actividade literária da vida da protagonista Jo/Saoirse Ronan, mas também à própria atmosfera cultural da época. Sabe-se, por exemplo, que Gerwig distribuiu entre os actores exemplares de Leaves of Grass, de Walt Whitman, para que lessem este livro durante as filmagens. A garra, a seriedade e a autenticidade com que as irmãs March encaram a vida têm como referências não só os já mencionados Thoreau, Emerson e Whitman, mas também as irmãs Brontë, identificadas explicitamente no filme como mulheres que singraram enquanto artistas, uma excepção naquela época. A atenção à vertente literária organiza a própria estrutura do filme, que começa num tempo em que Jo procura afirmar-se e sobreviver como escritora, revisitando depois em flashbacks o passado que a forma como tal, para terminar com a publicação do seu primeiro livro. Outro elemento interessante do filme de Gerwig é a complexidade das personagens femininas, que, ao contrário do que se verifica noutras adaptações, não são sempre boazinhas e lineares, antes demonstrando hesitações em relação ao empenho moral da família e chegando a cometer actos duvidosos e repreensíveis. No aspecto da ambiguidade moral, destaque para a excelente Amy/Florence Pugh, que não só queima um manuscrito de Jo como casa com o antigo pretendente desta e a substitui numa viagem à Europa na companhia da tia abastada. Além disso, as personagens femininas de Mulherzinhas nunca orbitam em torno das personagens masculinas. Ainda assim, nos seus momentos menos interessantes e mais convencionais, o filme interessa-se pela vertente telenovelesca e pseudo-idílica da vida das protagonistas, parecendo esquecer um pouco o rumo mais crítico em relação às desigualdades que as mulheres enfrentavam naquela época, algumas das quais ainda hoje estão por resolver. Nos tempos que correm, nem todas as personagens femininas têm de casar ou morrer no fim do livro ou do filme, mas continuam a ter muitas justificações a apresentar e dificuldades a superar sempre que assumem papéis menos convencionais. Quanto a Greta Gerwig, vai-se destacando aos poucos como figura culta, sem medo de explorar os seus próprios interesses e particularidades enquanto actriz, argumentista e realizadora. Ficamos com muito interesse em ver o que conseguirá fazer daqui a alguns anos, depois de se libertar de algumas preocupações com o gosto mais mainstream, se a deixarem.

Sobre o filme Lady Bird (Greta Gerwig, 2017).