Visto
no cinema, Mulherzinhas (Greta Gerwig, 2019) é uma adaptação inteligente
do livro com o mesmo título de Louisa May Alcott (1832-1888), conterrânea e
contemporânea de Thoreau e Emerson. Em relação a outras adaptações do mesmo livro,
o filme de Gerwig distingue-se por prestar mais atenção não só à actividade
literária da vida da protagonista Jo/Saoirse Ronan, mas também à própria
atmosfera cultural da época. Sabe-se, por exemplo, que Gerwig distribuiu entre
os actores exemplares de Leaves of Grass, de Walt Whitman, para que lessem
este livro durante as filmagens. A garra, a seriedade e a autenticidade com que
as irmãs March encaram a vida têm como referências não só os já mencionados Thoreau,
Emerson e Whitman, mas também as irmãs Brontë, identificadas explicitamente no
filme como mulheres que singraram enquanto artistas, uma
excepção naquela época. A atenção à vertente literária organiza a própria
estrutura do filme, que começa num tempo em que Jo procura afirmar-se e
sobreviver como escritora, revisitando depois em flashbacks o passado que a
forma como tal, para terminar com a publicação do seu primeiro livro. Outro
elemento interessante do filme de Gerwig é a complexidade das personagens
femininas, que, ao contrário do que se verifica noutras adaptações, não são
sempre boazinhas e lineares, antes demonstrando hesitações em relação ao
empenho moral da família e chegando a cometer actos duvidosos e repreensíveis.
No aspecto da ambiguidade moral, destaque para a excelente Amy/Florence Pugh, que
não só queima um manuscrito de Jo como casa com o antigo pretendente desta e a
substitui numa viagem à Europa na companhia da tia abastada. Além disso, as
personagens femininas de Mulherzinhas nunca orbitam em torno das
personagens masculinas. Ainda assim, nos seus momentos menos interessantes e
mais convencionais, o filme interessa-se pela vertente telenovelesca e
pseudo-idílica da vida das protagonistas, parecendo esquecer um pouco o rumo
mais crítico em relação às desigualdades que as mulheres enfrentavam naquela
época, algumas das quais ainda hoje estão por resolver. Nos tempos que correm,
nem todas as personagens femininas têm de casar ou morrer no fim do livro ou do
filme, mas continuam a ter muitas justificações a apresentar e dificuldades a
superar sempre que assumem papéis menos convencionais. Quanto a Greta Gerwig,
vai-se destacando aos poucos como figura culta, sem medo de explorar os seus
próprios interesses e particularidades enquanto actriz, argumentista e realizadora. Ficamos
com muito interesse em ver o que conseguirá fazer daqui a alguns anos, depois
de se libertar de algumas preocupações com o gosto mais mainstream, se a
deixarem.
Sobre o filme Lady Bird (Greta Gerwig, 2017).
Sobre o filme Lady Bird (Greta Gerwig, 2017).