2 de fevereiro de 2020

Os Filhos de Isadora


O Cinéfilo Preguiçoso ficou vivamente impressionado com Un Jeune Poète (2014), primeira longa-metragem de Damien Manivel. Foi, por isso, com expectativas elevadas que se dirigiu ao Nimas para ver o filme mais recente deste realizador francês, bailarino de formação. É precisamente em torno da dança que Os Filhos de Isadora (2019) se articula. O fio condutor, ao longo de três segmentos, é a coreografia que Isadora Duncan concebeu como homenagem aos seus dois filhos, depois da morte de ambos num acidente de automóvel em 1913. No primeiro segmento, uma bailarina tenta reconstituir essa coreografia, num trabalho minucioso que implica investigação, decifração da complexa notação usada por Duncan e o treino dos movimentos de dança propriamente ditos. A maneira como Manivel mostra estas actividades solitárias, meticulosas e disciplinadas, entre idas à biblioteca e pequenas cenas da vida pessoal, faz lembrar, por contraste, as deambulações aleatórias e vagamente cómicas do protagonista de Un Jeune Poète, em busca de inspiração pelas ruas de uma cidadezita mediterrânica. No segundo segmento, assistimos aos ensaios de um espectáculo baseado na mesma coreografia, interpretada por uma jovem bailarina portadora de trissomia 21. O registo é quase documental: predomina a exploração da relação entre a bailarina e a coreógrafa que a acompanha, incluindo momentos de pausa e lazer, aparentemente banais mas que ajudam a realçar a dedicação e o empenho que presidem ao esforço comum. Também aqui, a procura do gesto e da postura mais fiéis à coreografia de Duncan é uma constante, mas já estamos sob uma perspectiva mais pragmática, inerente ao objectivo de transformar essa mesma coreografia num espectáculo para um público. No terceiro segmento, enquanto se ouve o tema de Scriabin que acompanha o bailado, são-nos mostrados os rostos comovidos dos espectadores que assistem ao espectáculo preparado no segmento anterior – fazendo lembrar Shirin (2008), de Kiarostami. O segmento concentra-se numa das espectadoras: a personagem, interpretada por Elsa Wolliaston (coreógrafa, divulgadora e bailarina com um longo historial de colaborações nos domínios da música e do cinema), sai da sala de concertos, janta num restaurante, apanha um autocarro para casa, prepara-se para se deitar. Nesta sequência longa e magnífica, quase isenta de palavras, a marcha penosa da personagem, ajudada por uma muleta, é-nos mostrada de forma exaustiva, com o mesmo respeito pelo esforço corporal que foi dedicado aos movimentos graciosos das bailarinas dos segmentos anteriores. Talvez fosse desnecessária a parte final, em que esta personagem ensaia discretamente alguns dos passos de dança a que acabou de assistir: os simples gestos quotidianos, filmados com uma economia de meios impressionante, bastariam para transmitir de forma eficaz o efeito, na personagem, da coreografia a que assistira. Os Filhos de Isadora é um filme sobre o poder da arte para tocar as vidas alheias de formas diversas e imprevisíveis. Tem o mérito de transmitir o esforço técnico e investigativo inerente à prática da dança sem obliterar a componente de expressão pessoal que era tão cara a Duncan. Não sendo tão original e desconcertante como Un Jeune Poète, é um filme que confirma Manivel como um nome a seguir. Seria bom que alguma sala de cinema exibisse as restantes longas e curtas metragens deste realizador.