1 de novembro de 2020

A Garra Vermelha

Depois de ver La morte rouge (Víctor Erice, 2006), o Cinéfilo Preguiçoso procurou A Garra Vermelha/The Scarlet Claw (Roy William Neill, 1944), o filme que inspirou esta curta-metragem, e encontrou-o no YouTube, com qualidade de imagem razoável. A Garra Vermelha foi o oitavo de uma série de catorze filmes de aventuras de Sherlock Holmes protagonizados por Basil Rathbone e Nigel Bruce (enquanto Watson). O enredo gira em torno do que se supõe ser uma força misteriosa que mata animais e pessoas com um instrumento em forma de garra. Não se baseia directamente num texto de Conan Doyle, embora tenha alguns elementos em comum com O Cão dos Baskervilles (o cenário  dos pântanos, um monstro supostamente fluorescente, um criminoso à solta, a discussão sobre a distinção entre o sobrenatural, por um lado, e os factos e a lógica, por outro, etc.). Quem, como o Cinéfilo Preguiçoso, esteja familiarizado com a série protagonizada por Jeremy Brett poderá achar o Sherlock Holmes de Basil Rathbone menos carismático e decepcionantemente menos cabotino, sobretudo por causa dos diálogos, que são mais contidos e menos arrogantes. A personagem de Watson, aqui transformada numa espécie de bobo da corte, tem também pouco a ver quer com os livros de Conan Doyle, quer com adaptações televisivas e cinematográficas mais recentes. O filme em si, no entanto, é interessante, não só pela atmosfera misteriosa e concentracionária do espaço em que a acção decorre, entre pântanos e nevoeiros, mas também por explorar uma dimensão metadramática e metacinematográfica relacionada com o facto de quase todas as personagens assumirem um disfarce para se desligarem de certos acontecimentos do seu passado, incluindo alguns actores afastados da profissão que encarnam diferentes identidades sem ninguém saber. Além disso, todos os suspeitos são semelhantes fisicamente e, a dada altura, o próprio Sherlock Holmes assume um disfarce para se confundir com um deles. O início de A Garra Vermelha é um dos seus melhores momentos: na sala de convívio de uma pousada, todas as personagens estão imóveis, escutando o toque sinistro dos sinos de uma igreja; de repente, entra o carteiro Potts, que traz com ele as palavras e o movimento – como o cinema faz em relação às imagens. No fim de A Garra Vermelha, uma citação inesperada de Winston Churchill sobre a importância estratégica do Canadá, onde a acção se desenrola, recorda que este filme foi realizado e exibido durante a Segunda Guerra Mundial. Como Erice explica em La morte rouge, os espectadores da época associariam inevitavelmente a força maléfica e o terror do enredo à atmosfera desta guerra. Quanto ao próprio Erice, que na altura teria cinco ou seis anos e via um filme no cinema pela primeira vez, concluiu que a imobilidade dos espectadores no escuro da sala era determinada pela mesma força maléfica misteriosa no ecrã. Por esse motivo, a partir daí, nunca mais conseguiu dissociar o cinema desse medo e dessa inquietação. E é assim que uma aventura de Sherlock Holmes pode ser descrita não só como reflexão sobre a guerra e determinado período histórico, mas também como reflexão sobre os actos de fazer e ver filmes.