Julieta dos Espíritos (1965), de Federico Fellini, é o filme desta semana, gravado num canal de televisão. Realizado a seguir a Oito e Meio (1963), foi o primeiro filme a cores de Fellini, revelando uma verdadeira reflexão e um grande investimento tanto técnico como dramático neste meio de expressão. (Acrescente-se que o restauro digital da cópia é soberbo.) A coincidência entre o nome da actriz principal (Giulietta Masina, mulher do realizador) e da protagonista desencadeou especulações, algumas um tanto ou quanto ingénuas, sobre a inspiração biográfica do filme. Houve quem pensasse que se tratava de um retrato da actriz; houve quem tentasse tornar esta primeira leitura mais sofisticada, sugerindo que sim, talvez fosse um retrato da actriz, mas tal como Fellini a via, e não como ela era realmente; houve também críticos que defenderam que seria antes uma espécie de auto-retrato de Fellini, projectado numa figura feminina. Tantos anos depois, a questão das inspirações exploradas é secundarizada pelo facto de o filme continuar a ser um portento visual que maravilha ou espanta qualquer espectador. O enredo conta-se numa frase: uma mulher descobre que o marido tem uma relação extraconjugal. Note-se, no entanto, que Julieta dos Espíritos tem tanto impacto visual, que mesmo sem esta informação seria um prazer vê-lo, e nem a narrativa nem os diálogos assumem grande importância, o que aliás corresponde à ambição, revelada numa entrevista, do cineasta. O que nos enche de assombro neste filme é o modo como a vida mental da protagonista é vertida em imagens: Julieta move-se num mundo povoado por fantasmas, memórias, desejos e fantasias, entre recordações do avô e da educação católica, imagens do circo, sessões espíritas, conversas sobre astrologia, reuniões com detectives, passeios pela praia e encontros com uma vizinha de moral duvidosa. Para Fellini, estes sonhos e fantasias correspondem à vida real das pessoas; o neo-realismo não é suficiente para expressar esta dimensão. Fazendo lembrar a impassibilidade de Mastroianni em Oito e Meio, acossado por uma fauna de personagens estranhas e pletóricas, a contenção e a opacidade de Giulietta Masina, em contraste com a exuberância e o histrionismo dos outros actores e actrizes ou personagens, impedem o filme de descarrilar totalmente para o descontrolo imagético que o ameaça em quase todos os momentos. Outro grande prazer para o espectador de agora é ser recordado ao longo do filme de momentos da obra de outros realizadores, como Luca Guadagnino, Paolo Sorrentino, Pedro Almodóvar e Woody Allen, inequivocamente influenciados ou por este filme ou pela filmografia de Fellini como um todo. Quem falou da influência como angústia? Em muitos casos, é só um mecanismo que amplia o prazer do espectador. Mesmo não sendo um dos melhores filmes de Fellini, Julieta dos Espíritos é uma obra-prima que inspirou e tornou possível a obra de vários realizadores importantes que vieram a seguir, e continua a ser melhor e mais esteticamente arrojada do que quase 99% do que se realiza nos tempos que correm.