24 de abril de 2022

Traições

O filme Traições (Arnaud Desplechin, 2021) baseia-se no romance Deception (1990) de Philip Roth (que em Portugal teve edições com os títulos Traições e Engano). Desplechin já explicou que não considera este livro um dos romances maiores de Roth. Note-se, no entanto, que, para os não-aficionados do autor – isto é, aqueles que, como o Cinéfilo Preguiçoso, já leram quatro ou cinco livros dele, incluindo Pastoral Americana e Teatro de Sabbath, mas não foram conquistados –, Deception talvez seja uma das suas obras mais interessantes, na medida em que se caracteriza por uma componente metaficcional que impõe alguma distância relativamente aos temas que Roth costuma explorar obsessivamente. É preciso dizer também que, para um não-aficionado de Roth, Traições é um filme cativante mais por aquilo que tem de Desplechin do que pelo que tem de Roth. Por outras palavras, os seus elementos mais fracos são precisamente aqueles que vêm da obra de Roth: as resmunguices sobre o judaísmo, a obsessão com o adultério, a transformação de todas as mulheres em criaturas absolutamente neuróticas e insatisfeitas, visivelmente incapazes de ultrapassarem o seu estatuto de fantasia masculina, as preocupações com a doença e a morte, etc. O problema não são estes temas em si, mas sim o facto de Roth não ir além deles, reduzindo a sua obra apenas a isso. É interessante ver como Desplechin explora estes assuntos de forma perfeitamente coerente com os seus outros filmes e com a sua personalidade artística. Os admiradores deste cineasta reconhecerão a montagem sincopada e os jump cuts, assim como o recurso a narrativas secundárias que, apesar de breves, funcionam como prolongamentos potenciais do enredo principal, enriquecendo o filme. A direcção de actores também é típica de Desplechin. Os diálogos entre Denis Podalydès e Léa Seydoux, nos papéis do romancista e da amante, são sofisticados e articulados, mas também atravessados por uma tensão e uma inquietação permanentes que fazem lembrar, por exemplo, Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos (que, extraordinária como sempre, também entra em Traições) em Reis e Rainha (2004). Essa tensão, inevitável entre amantes que estão conscientes do carácter transiente do seu caso, desfaz-se e dá lugar ao processo de incorporação na ficção escrita pelo romancista. É notável a maneira como Desplechin filma esse processo, assumido e racionalizado pelo romancista nos diálogos com a mulher e com a amante, quando esta vem falar com ele por altura do lançamento do livro que conta a história vivida em comum. Para concluir, Traições é um excelente exemplo de um filme que resulta da colisão entre os universos de dois artistas com personalidades fortíssimas e imiscíveis: os espectadores que gostam de Roth ou de Desplechin irão encontrar aquilo que esperam e apreciam, mas não se pode dizer que tenha existido uma interacção ou sinergia fecunda.
 
Outros filmes de Arnaud Desplechin no Cinéfilo Preguiçoso: Trois Souvenirs de ma Jeunesse (2015), Os Fantasmas de Ismaël (2017), Roubaix, Misericórdia (2019).