10 de abril de 2022

Licorice Pizza

Paul Thomas Anderson interessa-se por figuras grandiosas, por vezes um tanto patéticas na sua ambição desmedida. São exemplo disto as personagens de Daniel Day-Lewis em Haverá Sangue (2007) e de Philip Seymour Hoffman em O Mestre (2012). Em paralelo, na sua filmografia, nota-se a simpatia por personagens mais discretas, entre a inépcia e a resignação: por exemplo, as de Adam Sandler em Punch-Drunk Love (2002) e de Joaquin Phoenix em Inherent Vice (2014). (Todos estes exemplos são de personagens masculinas. À semelhança de muitos cineastas norte-americanos das duas ou três últimas gerações, Anderson parece geneticamente incapaz de fazer um filme com uma mulher como protagonista.) Em Licorice Pizza (2021), estreado recentemente e visto esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, Gary (interpretado por Cooper Hoffman, filho de Philip Seymour) é um híbrido destas duas tendências: as suas ambições (actor, relações-públicas e empresário aos quinze anos) coexistem com a imaturidade própria da idade. Se tivesse mais dez anos e vivesse no Texas, no início do século XX, talvez se tornasse um magnata do petróleo como o de Haverá Sangue. Na Califórnia da década de 70, e em plena adolescência, vê-se limitado a esquemas mirabolantes para vender colchões de água enquanto faz a corte a Alana (Alana Haim), uma assistente de fotógrafo dez anos mais velha. A diferença de idades e as extravagantes actividades empresariais de Gary distinguem Licorice Pizza de tantos outros filmes coming of age com forte carga nostálgica. O traço distintivo deste filme é, contudo, o seu dinamismo e a profusão de episódios narrativos colaterais à linha narrativa principal, que no fundo se resume ao clássico «rapaz encontra rapariga», com uma dose generosa de avanços, recuos e mal-entendidos. Alguns desses episódios, que consistem em incursões na esfera de celebridades do cinema, incluindo uma cena hilariante com um produtor meio psicopata interpretado por Bradley Cooper, mostram Alana e Gary algo perdidos num mundo que os ultrapassa e de que pouco sabem: a crise petrolífera passar-lhes-ia ao lado se não lhes arruinasse o negócio dos colchões. Mas essa inadaptação é compensada pela manha, pelo desplante, pela ousadia e, sobretudo, pela energia inesgotável: as personagens passam grande parte do filme a correr de um lado para o outro, e é frequente passarem da marcha para a corrida num ápice, sem justificação aparente, como se só por momentos se tivessem esquecido de que não há tempo a perder. Outro tema importante é a família: o movimento centrífugo de Gary e Alana também é um percurso de afastamento das famílias reais (ausente e opressiva, respectivamente) e de formação de uma família alternativa, que neste caso é o grupo de jovens comparsas e parceiros de negócio de Gary. É outro tema recorrente em Paul Thomas Anderson: recorde-se, por exemplo, a personagem de Mark Wahlberg em Boogie Nights (1997), que encontra no meio dos filmes pornográficos um sucedâneo para a sua família abusiva. Licorice Pizza é um filme sem pretensões de grandiosidade e sem nada de radicalmente novo a oferecer, mas que se destaca no panorama de estreias recentes não só pela inteligência, pelo humor e pela sensibilidade, mas também pela maneira como capta a inquietação e fascínio da adolescência e do início da idade adulta num mundo bizarro, por vezes grotesco e perigoso, mas também belo e empolgante. O facto de, tal como A Filha Perdida e Drive My Car (este com a excepção do inevitável prémio de melhor filme estrangeiro), ter saído de mãos a abanar da cerimónia dos Óscares mostra bem que fugir à mediocridade não é coisa bem-vista nos corredores da Academia.
 
O Cinéfilo Preguiçoso regressará depois da Páscoa. Boa Páscoa para todos.
 
Outros filmes de Paul Thomas Anderson no Cinéfilo Preguiçoso: Inherent Vice (2014), Linha-Fantasma (2017).