Seria preciso um autêntico apocalipse para que o Cinéfilo Preguiçoso falhasse uma estreia em sala de um filme de Arnaud Desplechin. Roubaix, Misericórdia (2019) é um filme atípico deste realizador, em primeiro lugar pelo género (policial) que explora e por não incluir no seu elenco nenhum dos seus actores habituais, nomeadamente Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos. O argumento inspira-se no homicídio de uma idosa em Roubaix (cidade-natal de Desplechin, muito presente na sua obra), cometido em 2002 por duas vizinhas da vítima (interpretações notáveis de Léa Seydoux e Sara Forestier). Porém, na primeira parte do filme, este parece ser apenas um entre os vários casos que ocupam os agentes de uma esquadra, com destaque para o capitão Daoud (excelente Roschdy Zem – justíssimo César de Melhor Actor) e o novato Louis (Antoine Reinartz). Há semelhanças claras entre Roubaix, Misericórdia e outros filmes e séries policiais, sobretudo no que toca à atenção ao lado humano dos agentes e às fricções entre vida pessoal e profissional. Estas explorações, no entanto, nunca são aprofundadas, deixando o espectador um tanto frustrado: em particular, a vida espiritual e as referências literárias e filosóficas de Louis, que se adivinham complexas, são meramente afloradas num punhado de cenas. Faz parte do modus operandi de Desplechin a inserção de brevíssimos vislumbres biográficos das suas personagens, como que sugerindo novos filmes em potência ou por vir, mas aqui esta opção gera um desequilíbrio de que o filme se ressente. A segunda metade centra-se quase exclusivamente no caso do homicídio, com destaque para os interrogatórios das jovens, onde a procura da verdade, longe de assentar numa maiêutica racional, é empreendida à base da brusquidão, da manipulação psicológica e da confusão mental. A vertente verbal dos interrogatórios e confissões é, no fim, complementada com uma reconstituição no local do crime, numa das cenas mais fortes do filme. O registo quase documental que predomina nesta segunda parte tem a vantagem de excluir leituras moralizantes: a realidade é o que é, as personagens fizeram aquilo que fizeram, não há a evolução ou epifania inevitável na esmagadora maioria das obras deste género. Esta colagem aos factos, contudo, tem o perigo de enfraquecer o interesse do espectador em face de um incidente criminal sórdido, mas semelhante a muitos outros. Concluindo: Roubaix, Misericórdia é um filme desconcertante, nem sempre pelas melhores razões, mas que tem como ponto a favor sugerir uma tentativa de renovação e uma aposta na contenção formal por parte de Desplechin, que parecia algo preso às suas sagas familiares ou intrigas povoadas de personagens desnorteadas e hiperactivas.
Outros filmes de Desplechin no Cinéfilo Preguiçoso: Trois souvenirs de ma jeunesse (2015), Os Fantasmas de Ismaël (2017).