8 de setembro de 2024

The Neon Bible

Felizmente, a Cinemateca está a apresentar uma retrospectiva de Terence Davies. Esta semana, à laia de homenagem a este realizador britânico (1945-2023) e a Gena Rowlands (1930-2024), o Cinéfilo Preguiçoso viu The Neon Bible (1995), um filme baseado no romance epónimo de John Kennedy Toole (1989), narrado em flashbacks por um rapaz à janela de um comboio, recordando a infância e a adolescência vividas no contexto de repressão religiosa, racial, social e sexual do Mississípi, entre fins dos anos 30 e início dos anos 50. Não se faz justiça a The Neon Bible quando se descreve este filme, como o próprio Davies e outros fizeram, como mera obra de transição e experimentação – por ser a primeira adaptação literária deste realizador, por ter a sua primeira grande personagem feminina (a tia Mae, interpretada por Gena Rowlands), e por explorar o formato scope e diferentes géneros e estilos (filme de guerra, musical, denúncia do charlatanismo religioso, história de adolescência, expressão do gótico sulista, etc.). A indefinição de género, a imperfeição e a artificialidade quase teatral e ritualística que caracterizam The Neon Bible permitem-lhe mostrar maravilhosamente bem os mecanismos da memória. Até aqui, Davies tinha explorado cinematograficamente a sua biografia, em filmes como Distant Voices, Still Lives (1988) e The Long Day Closes (1992). Neste filme, consegue a estranha proeza de contar a sua própria história contando a história de uma personagem de outro autor. A experimentação de géneros pode ser encarada como uma espécie de revisitação da memória do cinema, em busca dos meios mais adequados para se exprimir. Mesmo a atitude do protagonista (David, interpretado em diferentes idades por Jacob Tierney e Drake Bell), assistindo desamparadamente à violência, loucura e pobreza da sua existência num universo em que as mulheres são as figuras principais, é a de um espectador de cinema, na medida em que se limita a observar, comovido e deslumbrado, sem grande possibilidade de intervenção. Quando, perto do fim do filme, David se aventura no reino da acção – com resultados catastróficos –, desencadeia a narração fragmentária da história durante a sua fuga de comboio. Antes disso, o famoso e belíssimo plano com o lençol branco que acaba por tapar o ecrã, transformando-se nele, ao som distante da banda sonora de E Tudo o Vento Levou (1939, Victor Fleming), faz recordar momentos semelhantes em A Estrada (Federico Fellini, 1954) e Fechar os Olhos (Víctor Erice, 2023) e lembra que fazer cinema pode ser captar imagens mal entrevistas no vazio através daquilo que só com dificuldade nos permite vislumbrá-las. Já houve quem salientasse que nem Terence Davies nem John Kennedy Toole são grandes contadores de histórias. Na verdade, não é contar histórias que lhes interessa mais. Como este filme bem demonstra, o cinema consegue fazer muito mais do que isso. A dada altura, nas diferentes vozes que captamos em The Neon Bible, entre discursos na rádio, encontros na igreja, sessões com pregadores e conversas na rua, a tia Mae pede a David que leia um poema de Longfellow («The Day is Done») em que se fala da possibilidade de a música das palavras e das coisas mais humildes obrigar as preocupações do dia a retirarem-se silenciosamente, e este filme, com toda a sua luz e escuridão, faz uma coisa parecida. Não é invulgar que os momentos em que determinado autor está numa encruzilhada sejam aqueles que de modo mais desarmado nos revelam toda a complexidade da sua obra.

Outros filmes de Terence Davies no Cinéfilo Preguiçoso: A Quiet Passion (2016); Benediction (2021).