Depois do visionamento recente do documentário Bergman – Um Ano, Uma Vida (2018), o Cinéfilo Preguiçoso estava com vontade de ver um filme de Ingmar Bergman, mas um conjunto de circunstâncias inopinadas – ou seja, a constatação de que afinal não tinha o DVD do filme que queria ver – levou a que optasse, em vez disso, por uma longa-metragem de Federico Fellini gravada recentemente na televisão. A Estrada (1954) é frequentemente considerado uma das obras-primas deste realizador, ou até mesmo o ponto alto da sua carreira. Visto em 2021, à luz da sua filmografia ulterior, A Estrada impressiona pela segurança formal e pela maneira como Fellini gere o sentimentalismo inerente ao argumento sem cair na lamechice, mas sente-se que o cineasta ainda estava à procura do modo de expressão mais apropriado. O registo melodramático que Fellini adopta aqui foi rapidamente preterido em favor de um cinema mais voltado para a expressão pictórica e narrativamente fluida das suas obsessões e memórias, com o sucesso conhecido. Contudo, A Estrada está muito longe de ser um filme menor. É uma história relativamente linear, baseada num dos esquemas narrativos mais populares entre os argumentistas (e que frequentemente dá origem a filmes pretensamente humanistas, mas insuportavelmente hipócritas): a tensão entre duas personagens que o destino junta e que parecem incompatíveis – Gelsomina (o papel da vida de Giulietta Masina) e Zampanò (Anthony Quinn). O percurso destes dois artistas de rua pelas paisagens suburbanas de uma Itália a meio caminho entre a destruição da Segunda Guerra Mundial e a prosperidade dos anos 60 e 70 é mostrado com uma sobriedade própria do neo-realismo, mas também com toques de lirismo que remetem para a fase mais tardia da obra felliniana: por exemplo, os três músicos que irrompem no plano quando Gelsomina está à beira da estrada, e que a conduzem ao circo onde conhecerá o “Louco”, personagem que acabará por precipitar a ruptura com Zampanò. No entanto, é pouco útil esmiuçar A Estrada em busca de elementos que anunciem os filmes que se lhe seguiram: é inegável que vale por si e é uma prova de maturidade artística, independentemente de se achar (como é o caso do Cinéfilo Preguiçoso) que foi também uma etapa no trajecto rumo às obras-primas que Fellini viria a realizar, com maior experiência e noção dos meios ao seu alcance para se exprimir. Pegando numa ideia de Bergman – Um Ano, Uma Vida, pode afirmar-se que, tal como Bergman, Fellini teve de perceber que a melhor maneira de fazer cinema consistia em filmar os seus traumas e os seus fantasmas, em total liberdade.
Outros
filmes de Federico Fellini no Cinéfilo Preguiçoso: Julieta dos Espíritos (1965); A Voz da Lua (1990).