O Sol do Marmeleiro – a longa-metragem anterior de Víctor Erice – estreou em 1992. Quando vemos Fechar os Olhos (2023), o seu filme mais recente, são tantos os ecos da vida e do cinema que pressentimos, que ficamos com a impressão de que Erice, mesmo sem dar por isso, passou trinta anos a imaginá-lo. Isto acontece por haver alguns paralelos entre a história de Erice e a dos dois protagonistas (um realizador e um actor que, nas entrevistas e usando cinematograficamente a figura de Jano, ele descreve como duas faces da mesma identidade ou personagem), mas também pelo facto de Fechar os Olhos permitir uma reflexão sobre a natureza da memória e o modo como a memória da nossa vida se confunde, ou em alguns pontos coincide, com a memória do cinema. Há uma sequência em particular – aquela em que realizador e actor se juntam para caiar um moinho e são filmados entre lençóis a secar – em que nos interrogamos se Erice cita deliberadamente a sequência de A Estrada (Federico Fellini, 1954) em que Zampanò (Anthony Quinn) recorda Gelsomina (Giulietta Masina) quando ouve uma rapariga que põe lençóis a secar enquanto entoa uma canção que Gelsomina costumava cantar. Perante esta sequência no filme de Fellini, pensamos que o que resta das pessoas são coisas levadas pelo vento, que, mesmo assim, conseguem chegar até nós; imagens mal entrevistas no vazio, tapadas por aquilo que afinal nos permite vislumbrá-las. De modo semelhante, em Fechar os Olhos, a memória é figurada por: os tangos assobiados e os gestos que o corpo de um actor que perdeu a memória consegue, apesar de tudo, convocar (nós de marinheiro, a habilidade para consertar); uma dedicatória num livro perdido, mas reencontrado por acaso; uma fotografia que o actor pensa que é da sua vida, mas afinal é do filme de que fugiu; um armazém em que estão guardados as bobinas, os adereços e outro material desse filme inacabado e onde, a dada altura, o protagonista fica sem luz e tem de usar uma lanterna para ver, como às vezes acontece nas salas de cinema, quando os espectadores chegam atrasados. Para Erice, a memória também é quem não conseguimos continuar a ser, o que esquecemos, o que perdemos, os fragmentos que conservamos, mesmo não os compreendendo, como os objectos pessoais da caixa do actor, sem sentido para ele próprio. De acordo com Erice, talvez a memória do cinema seja mais forte do que a da vida. A filha do actor não reconhece o pai, mas a filha da sua personagem reconhece-o no filme inacabado dentro do filme. O realizador decide projectar este filme inacabado para ajudar o actor a recuperar a memória. No fim, durante essa sessão que reúne todas as personagens importantes num velho cinema, acontecem duas coisas notáveis: os actores, no ecrã, olham para a câmara, como que para dizer que o cinema já fez o seu papel e que cabe às pessoas fazerem o que têm a fazer na vida real; e o actor amnésico, sentado na sala, fecha os olhos. Já não precisa de ver o filme? Recuperou a memória? Talvez o cinema seja composto por recordações que nem sempre sabemos que temos. Ficam dentro de nós e, muitas vezes sem darmos por isso, exprimimo-las nos nossos gestos e no ritmo da nossa vida – como Erice pode ter feito, voluntária ou involuntariamente, na sequência com os lençóis e o moinho caiado, ambos tão parecidos com ecrãs de cinema.
Ler também: La morte rouge | Paris – Madrid: Idas e Voltas (Víctor Erice, 2006; Alain Bergala, 2010).