29 de setembro de 2019

Nuvens Dispersas


O enredo de Nuvens Dispersas (1967), último filme de Mikio Naruse, tem numerosos elementos em comum com outros do mesmo realizador, em particular o facto de se centrar numa personagem feminina obrigada a fazer escolhas difíceis na sequência de um acontecimento trágico. Yumiko (Yoko Tsukasa, excelente) vê-se obrigada, numa altura em que se preparava para emigrar e estava grávida do primeiro filho, a mudar de vida quando o marido morre subitamente devido a um atropelamento. O filme mostra a aproximação entre Yumiko e Shiro, o motorista responsável pelo atropelamento, que, depois de ser ilibado em tribunal, insiste em compensar financeiramente a viúva, preocupando-se com ela, numa altura em que, deserdada pela família do marido, se vê a braços com dificuldades financeiras e tem de ir viver para a estalagem onde trabalha a cunhada. Existem semelhanças interessantes entre este enredo e o de Wolfsburg (Christian Petzold, 2003), mas com uma diferença crucial: no filme de Naruse, a personagem feminina está desde o início ciente da culpa do responsável pela morte do ente querido, o que remove o elemento de surpresa e a tensão em torno da revelação, mas intensifica a ambiguidade moral da situação. Yumiko e Shiro são retratados como seres destroçados, ainda que com vontade de continuarem a viver: o luto de um e a culpa do outro fornecem-lhes um território comum de dor partilhada e a esperança de, ao abraçarem aquilo que os une, fugirem à solidão que parece inevitavelmente o seu destino. Tratando-se de um pessimista como Naruse, essa esperança desvanece-se inevitavelmente perante a constatação de que o passado é impossível de apagar e continuaria a assombrá-los para onde quer que fossem – e este é um filme pródigo em deslocações e exílios, sempre forçados. É curioso constatar os ecos que se estabelecem entre Nuvens Dispersas e Tormento (1964), sobretudo nas respectivas cenas finais. Em ambos os filmes, a aproximação entre as personagens principais culmina num afastamento do mundo e numa simulação de uma vida a dois que ambos sabem que nunca se irá concretizar. Nuvens Dispersas é um filme digno de encerrar a filmografia de Naruse: perfeitamente coerente com os temas e preocupações deste autor, notável pela maneira assumida com que abraça o registo do melodrama sem prescindir de invenções visuais e de detalhes formais desconcertantes que só alguém na plena posse dos seus recursos artísticos se pode permitir.

Outros filmes de Mikio Naruse no Cinéfilo Preguiçoso: O Som da Montanha (1954); Ao Sabor da Corrente (1956); Quando Uma Mulher Sobe as Escadas (1960); Tormento (1964).