26 de maio de 2019

Tormento


O Cinéfilo Preguiçoso tinha esperança de escrever, nesta semana, sobre o novo filme de Agnès Varda. Tendo a estreia deste sido adiada lá para o Verão, a solução de recurso foi mais um DVD de Mikio Naruse. O enredo de Tormento (1964), tal como em muitos outros filmes de Naruse, centra-se numa personagem feminina que se vê forçada a tomar uma decisão sobre a sua vida, entre pressões familiares e financeiras. Reiko (mais uma vez Hideko Takamine) é uma viúva que trabalhou arduamente, durante dezoito anos, para manter a mercearia que o marido lhe deixou. A família do marido, embora reconheça o seu esforço, vê-a como um empecilho, sobretudo quando surge o plano de transformar a mercearia num supermercado, para competir com as grandes superfícies que ameaçam destruir o pequeno comércio. Koji (Yuzo Kayama), cunhado de Reiko, tenta mantê-la no negócio familiar e acaba por lhe declarar a sua paixão. Em comparação com outras obras de Naruse discutidas recentemente pelo Cinéfilo (O Som da Montanha, Ao Sabor da Corrente e Quando Uma Mulher Sobe as Escadas), Tormento é mais linear, objectivo e isento de sentimentalismo (com a excepção das cenas finais – já lá iremos). Uma parte significativa do filme parece servir apenas para ilustrar as tensões entre as personagens, com pouco a assinalar em termos de investimento criativo, o que lhe retira algum interesse. Contudo, o filme ganha outra intensidade quando Reiko toma a decisão de partir e é seguida por Koji: numa longa sequência, extremamente delicada e tocante, Naruse mostra-nos estas personagens, que no fundo sabem que nunca ficarão juntas, a ensaiarem pequenos gestos e rotinas de intimidade conjugal em espaços públicos (o comboio) e num albergue de uma localidade onde decidem repentinamente sair. Extraordinária e quase idílica, esta suspensão no tempo adquire ainda mais força, em retrospectiva, devido ao desenlace trágico. Como é habitual neste realizador, a dimensão sociológica é importante. A ascensão dos supermercados e a subsequente asfixia das lojas tradicionais formam o pano de fundo que condiciona toda a história. Apesar de privilegiar o olhar atento sobre as personagens em detrimento de considerações de outra ordem, Naruse sempre se mostrou agudamente consciente do modo como as dinâmicas sociais condicionam os destinos individuais, à maneira de, por exemplo, Balzac ou Zola. Não parece demasiado inverosímil supor que um dos romances deste autor (Au Bonheur des Dames, 1883) possa ter sido a inspiração para o argumento de Zenzo Matsuyama ou para o conto do próprio Naruse em que este se baseou.