24 de março de 2019

Ao Sabor da Corrente


Entre O Som da Montanha (1954, filme sobre o qual escrevemos há quinze dias) e Ao Sabor da Corrente (1956, visto esta semana em DVD), Mikio Naruse realizou quatro longas-metragens e ainda um segmento de outra, o que atesta a extraordinária produtividade deste realizador, inserido no exigente sistema de estúdios do Japão do pós-guerra, que não convidava à ociosidade. Baseado numa obra da romancista e ensaísta Aya Koda, Ao Sabor da Corrente (adopta-se aqui a tradução literal do título em francês) descreve a vida numa casa de gueixas de Tóquio com a existência ameaçada pelas dívidas e pelos problemas pessoais da dona e das outras ocupantes. Tal como em O Som da Montanha, coexistem neste filme vários enredos secundários em torno de um tema principal; a impressão de dispersão aqui é maior, embora as histórias e situações familiares se desenrolem quase invariavelmente na casa de gueixas, minando a sua estabilidade. Outra semelhança com o filme mencionado é o movimento no sentido de contrariar uma situação de estagnação. Contudo, ao passo que a personagem de Setsuko Hara protagonizava uma ruptura radicalmente centrífuga, em Ao Sabor da Corrente Katsuyo (Hideko Takamine), filha da dona do estabelecimento, permanece confinada ao mesmo lugar, ganhando a vida como costureira, mas continuando a viver no mesmo ambiente onde foi criada. O filme, aliás, termina com uma perturbadora mistura de mudança (nova proprietária, saneamento financeiro, novas gueixas, futuro incerto) e de imobilidade (mesmas rotinas, mesmo ambiente). A criada, uma personagem aparentemente apagada mas que carrega um passado trágico, revelado com muita parcimónia, é um dos elementos imutáveis no meio desta falsa renovação, que se presta a leituras sociológicas no contexto de um Japão a meio caminho entre a catástrofe da guerra e a industrialização e modernização em massa que ocorreram nas décadas seguintes. Ao Sabor da Corrente confirma o talento de Naruse para filmar de forma sóbria e isenta de complacência um ambiente doméstico e as personagens que o povoam, movidas pelas suas aspirações e pudores. São personagens que, nada tendo de extraordinário à primeira vista, adquirem nobreza pela maneira como recusam abandonar a ética e a dignidade, mesmo quando a fuga ao sofrimento é o seu desígnio mais urgente. Para finalizar, uma referência ao elenco magnífico, que é uma espécie de mini-enciclopédia de actrizes deste período tão fértil em obras-primas. Muitas delas trabalharam, ao longo dos anos, com mais do que um dos génios que revelaram o cinema nipónico ao público ocidental: Naruse, Kurosawa, Mizoguchi, Ozu. Kinuyo Tanaka, por exemplo, deu corpo à personagem principal de A Vida de O’Haru (1952), de Mizoguchi; em Ao Sabor da Corrente, a dona da casa de gueixas, pouco impressionada com o nome verdadeiro da criada que Tanaka interpreta, rapidamente lhe atribui a alcunha de “O’Haru”.