21 de março de 2021

Mulher na Praia

Nos filmes de Hong Sang-Soo, as repetições surgem como esquemas formais metanarrativos ou como coincidências que acontecem às personagens. Em Mulher na Praia (2006), visto esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, a personagem principal procura as repetições com uma avidez deliberada que é pouco comum na obra do realizador sul-coreano. Jung-Rae é um realizador que, para se concentrar na escrita de um argumento, parte para uma estância balnear na companhia de um colaborador. Este traz também uma jovem, Mun-Suk, que, apesar de ser casado com outra mulher, descreve como sua namorada, mas que rapidamente se mostra disponível para encetar uma relação romântica com o realizador. Na esteira da brevíssima aventura e ruptura com Mun-Suk, Jun-Rae regressa sozinho à estância e procura repetir os momentos passados com a jovem: sob o pretexto de uma entrevista para um filme, aborda uma desconhecida, aparentemente convencido da sua parecença física com Mun-Suk, e entrega-se a um jogo de sedução tão desastrado como o anterior e a uma aventura tão efémera e patética como a que vivera poucos dias antes. Mulher na Praia pode ser descrito como um filme sobre um bloqueio criativo: depois destes fracassos amorosos auto-infligidos, Jun-Rae consegue finalmente escrever o tal argumento (ou talvez um esboço, tendo em conta que cabe, literalmente, no bolso da camisa…), parecendo ter vivido peripécias suficientes para organizar as imagens visuais com que está obcecado e transpô-las para o papel. Sendo as coincidências o tema do filme que ele se propõe escrever, compreende-se o seu interesse pelas repetições, mesmo que imperfeitas e forçadas. Procurar elementos autobiográficos neste filme é um exercício tão válido ou ocioso como em qualquer outro de Hong: toda a sua filmografia é uma sucessão de “contos de cinema” (Conto de Cinema, aliás, é o título do filme imediatamente anterior a este), marcados pelo problema da abordagem à realidade e da sua transposição para narrativas, sejam elas orais, visuais ou literárias. Jun-Rae é uma personagem cujas aptidões sociais deixam a desejar: numa cena idílica (e bastante estranha, possivelmente mera fantasia) em que corre num areal, acompanhado por Mun-Suk e por um cão algo misterioso, acaba por magoar a perna, por ter “forçado um músculo que não costuma usar”, talvez uma metáfora para dizer que não está equipado para ser feliz na vida. Não parece capaz de fazer o percurso em sentido inverso que outras personagens fazem, como o protagonista de Conto de Cinema (2005), ou a Oki de O Filme de Oki (2010): do cinema para a vida, numa trajectória de reflexão e compreensão do que lhes falta para serem felizes ou serem pessoas melhores. Mulher na Praia, rodado em 35 mm e com um orçamento relativamente elevado, pode ser visto como um ponto de viragem na carreira de Hong: depois deste, levou dois anos a concluir um novo filme (Night and Day, de 2008, rodado em Paris), adoptando em seguida o regime de rodagens rápidas em formato digital e com orçamentos minúsculos que manteve até hoje. Os temas predilectos e obsessões, esses, não mudaram.
 
Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes (2000); Conto de Cinema (2005); O Filme de Oki (2010); The Day He Arrives (2011); Haewon e os Homens (2013); Right Now, Wrong Then (2015); On the Beach at Night Alone (2017); O Dia Seguinte (2017); Hotel à Beira-Rio (2018); A Mulher que Fugiu (2020).