Entre os livros de Elena Ferrante, o Cinéfilo Preguiçoso prefere as novelas ou romances mais curtos (em Portugal, reunidos no volume Crónicas do Mal de Amor da Relógio D’Água) à tetralogia de Nápoles, por serem textos densos e concentrados, com uma intensidade rara. Mas, como nem sempre os livros de que gostamos dão origem a adaptações cinematográficas interessantes, tentou moderar as expectativas em relação a A Filha Perdida (Maggie Gyllenhaal, 2021). Quando contactada por Maggie Gyllenhaal, a própria Ferrante lhe terá sugerido que adaptasse o livro (traduzido em Portugal por Margarida Periquito com o título A Filha Obscura) e realizasse o filme. É bem possível que tenha sido uma opção decisiva, tendo em conta que se trata de um texto com uma complexidade que facilmente poderia ser escamoteada por alguém que o transformasse numa história bem contada sobre uma mulher supostamente egoísta. A adaptação de Gyllenhaal tem o enorme mérito de prestar atenção aos pormenores menos narrativos (um regador de brincar, uma cigarra na almofada, um chapéu grande, um alfinete de cabelo, etc.) sem os tornar decorativos e sem cair na tentação de ser demasiado explicativa e de explorar desnecessariamente as motivações psicológicas das personagens. (Na verdade, os momentos menos conseguidos de A Filha Perdida talvez sejam os flashbacks da protagonista que culminam na decisão de se afastar das filhas pequenas, na medida em que são mais convencionais no formato e podem ser entendidos como justificativos.) Mesmo a figura da boneca, uma espécie de corporização da relação de quase indistinção entre mães e filhas, é muito mais do que isso tanto no livro como no filme, pelo facto de não ser tratada como mero símbolo, mas antes como um objecto físico, incómodo, refractário a leituras óbvias. Outro elemento essencial para a qualidade do filme de Gyllenhaal foi, sem dúvida nenhuma, a escolha de uma actriz como Olivia Colman para o papel de protagonista. Ferrante e Gyllenhaal não só trabalham uma personagem evitada por muitos – a de uma mulher com sentimentos ambivalentes em relação à maternidade – como também fazem notar que muitas mulheres são assim. (Julianne Moore interpreta uma figura próxima em As Horas – realizado por Stephen Daldry em 2002, adaptando um romance de Michael Cunningham –, mas não tem uma personagem tão rica.) Combinando muitas mulheres numa só, é possível até que a Leda de Olivia Colman tenha mais cambiantes do que a protagonista de Ferrante. Colman consegue a proeza de compor uma personagem com as características que aprendemos a condenar nas mulheres e, mesmo assim, suscitar empatia e identificação. Por todos estes motivos, A Filha Perdida é um excelente filme com personagens e temas poucas vezes tratados no cinema com a complexidade que merecem, mas também uma adaptação cinematográfica à altura do texto de partida. Uma menção final para a notável banda sonora de Dickon Hinchliffe (ex-Tindersticks) e para o acolhimento favorável que este filme, estreia de Maggie Gyllenhaal na realização, está a receber, traduzido em numerosos prémios, entre os quais o de melhor argumento no último Festival de Veneza.