6 de fevereiro de 2022

A Filha Perdida

Entre os livros de Elena Ferrante, o Cinéfilo Preguiçoso prefere as novelas ou romances mais curtos (em Portugal, reunidos no volume Crónicas do Mal de Amor da Relógio D’Água) à tetralogia de Nápoles, por serem textos densos e concentrados, com uma intensidade rara. Mas, como nem sempre os livros de que gostamos dão origem a adaptações cinematográficas interessantes, tentou moderar as expectativas em relação a A Filha Perdida (Maggie Gyllenhaal, 2021). Quando contactada por Maggie Gyllenhaal, a própria Ferrante lhe terá sugerido que adaptasse o livro (traduzido em Portugal por Margarida Periquito com o título A Filha Obscura) e realizasse o filme. É bem possível que tenha sido uma opção decisiva, tendo em conta que se trata de um texto com uma complexidade que facilmente poderia ser escamoteada por alguém que o transformasse numa história bem contada sobre uma mulher supostamente egoísta. A adaptação de Gyllenhaal tem o enorme mérito de prestar atenção aos pormenores menos narrativos (um regador de brincar, uma cigarra na almofada, um chapéu grande, um alfinete de cabelo, etc.) sem os tornar decorativos e sem cair na tentação de ser demasiado explicativa e de explorar desnecessariamente as motivações psicológicas das personagens. (Na verdade, os momentos menos conseguidos de A Filha Perdida talvez sejam os flashbacks da protagonista que culminam na decisão de se afastar das filhas pequenas, na medida em que são mais convencionais no formato e podem ser entendidos como justificativos.) Mesmo a figura da boneca, uma espécie de corporização da relação de quase indistinção entre mães e filhas, é muito mais do que isso tanto no livro como no filme, pelo facto de não ser tratada como mero símbolo, mas antes como um objecto físico, incómodo, refractário a leituras óbvias. Outro elemento essencial para a qualidade do filme de Gyllenhaal foi, sem dúvida nenhuma, a escolha de uma actriz como Olivia Colman para o papel de protagonista. Ferrante e Gyllenhaal não só trabalham uma personagem evitada por muitos – a de uma mulher com sentimentos ambivalentes em relação à maternidade – como também fazem notar que muitas mulheres são assim. (Julianne Moore interpreta uma figura próxima em As Horas  realizado por Stephen Daldry em 2002, adaptando um romance de Michael Cunningham –, mas não tem uma personagem tão rica.) Combinando muitas mulheres numa só, é possível até que a Leda de Olivia Colman tenha mais cambiantes do que a protagonista de Ferrante. Colman consegue a proeza de compor uma personagem com as características que aprendemos a condenar nas mulheres e, mesmo assim, suscitar empatia e identificação. Por todos estes motivos, A Filha Perdida é um excelente filme com personagens e temas poucas vezes tratados no cinema com a complexidade que merecem, mas também uma adaptação cinematográfica à altura do texto de partida. Uma menção final para a notável banda sonora de Dickon Hinchliffe (ex-Tindersticks) e para o acolhimento favorável que este filme, estreia de Maggie Gyllenhaal na realização, está a receber, traduzido em numerosos prémios, entre os quais o de melhor argumento no último Festival de Veneza.