Para o Cinéfilo Preguiçoso, a estreia de um filme de Woody Allen é sempre uma grande ocasião. Este Rifkin’s Festival (2020), sobre um escritor/professor de cinema que acompanha a mulher ao Festival de San Sebastián e, entre os passeios que dá pela cidade, percebe que tem de mudar de vida, é um divertimento para cinéfilos, mas também aborda algumas questões interessantes que Woody Allen ainda não tinha tratado. Os jogos cinéfilos desenvolvem-se principalmente nos estranhos sonhos e visões diurnas de Mort Rifkin/Wallace Shawn, em que são recriadas cenas de filmes que tanto este como o próprio Woody admiram (de Orson Welles, Fellini, Godard, Truffaut, Lelouch, Bergman e Buñuel), mas repetidas como farsa, com as personagens e os actores de Rifkin’s Festival, numa espécie de sequela duvidosa. Há também uma cena que parece recriar a discussão entre as personagens de Penélope Cruz e Javier Bardem em Vicky Cristina Barcelona (2008), entre outras que ecoam situações que já vimos noutros filmes de Woody Allen. Isto porque Rifkin’s Festival também é sobre aquilo que vem acontecendo ao cinema, numa época em que as preocupações comerciais se sobrepõem às preocupações artísticas, com a consequência de as produções mais medianas serem sobrevalorizadas pelo facto de terem potencial para gerar mais lucros, sobretudo se cultivarem uma “mensagem” em sintonia com o zeitgeist social e político. Esta questão é bem ilustrada pela personagem do realizador interpretada por Louis Garrel, que enuncia e trabalha uma série de lugares-comuns e superficialidades que são consideradas geniais por quase toda a gente, para grande perplexidade do protagonista. Em Mort Rifkin temos uma personagem que reage contra esta mediocridade, tal como reage contra a mediocridade que identifica no que ele próprio escreve, recusando-se a publicar um romance que não seja uma obra-prima. Para que os espectadores sintam empatia em relação a este protagonista que os outros descrevem como pretensioso afectado, é essencial a interpretação do magnífico Wallace Shawn. A primeira vez em que vimos Shawn no cinema de Woody Allen foi em Manhattan (1979), no papel de Jeremiah, ex-marido de Marie Wilkie/Diane Keaton. Marie refere várias vezes um ex-marido que seria uma personalidade magnética e um dínamo sexual, mas, quando ele finalmente aparece, depois de todas estas descrições hiperbólicas, tem a aparência de Wallace Shawn. Neste Rifkin’s Festival, Shawn representa um papel que parece feito à medida. À semelhança de Rifkin, também Wallace Shawn (que é autor de várias peças e livros de ensaios, mas não é famoso como escritor) pensou durante muito tempo que poderia ser um grande escritor com sucesso, tendo-se visto obrigado a constatar com alguma surpresa que lhe dão mais valor como actor, assim como Rifkin conclui no filme que é mais feliz a dar aulas sobre cinema. Apesar de não ter a aparência convencional dos grandes actores americanos, Wallace Shawn consegue ser de uma subtileza que facilmente passa despercebida a quem não o tenha visto noutros papéis. Há actores, como Jack Nicholson, que continuam a ser eles próprios no cinema, independentemente da personagem que interpretam; Wallace Shawn é sempre ele próprio, mas também a personagem que representa. Na sua aparência de ligeireza, Rifkin’s Festival acaba por ser uma reflexão sobre cinema e a arte, mas também sobre as expectativas que ficam por cumprir no plano pessoal e sentimental, e sobre a vontade de dar a volta à situação, em busca da realização e da felicidade.
Outros filmes de Woody Allen no Cinéfilo Preguiçoso: Broadway Danny Rose (1984); Setembro (1987); Irrational Man (2015); Café Society (2016); Roda Gigante (2017); Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2019).
Sobre outro filme com Wallace Shawn: My Dinner with Andre (Louis Malle, 1981).