15 de setembro de 2024

The Wonderful Story of Henry Sugar and Three More

Visto esta semana na Netflix, The Wonderful Story of Henry Sugar and Three More (2024) é a segunda incursão de Wes Anderson no universo ficcional do autor britânico Roald Dahl, depois do filme de animação Fantastic Mr. Fox (2009). Apesar de não ter visto nem este último nem Isle of Dogs (2018), a outra longa-metragem de animação de Anderson, o Cinéfilo Preguiçoso adivinha uma proximidade estética muito pronunciada entre estes e The Wonderful Story... : os movimentos dos actores de carne e osso, muito artificiais e sincopados, parecem programados por uma intenção de emular a técnica stop-motion. O artificialismo da representação a que os espectadores dos filmes de Anderson há muito se habituaram atinge aqui um extremo: mais do que representar, os actores funcionam como narradores dentro da narrativa, alternando constantemente as suas falas com explicações dirigidas à quarta parede, sempre com dicção impecável e ausência total de inflexões dramáticas. É interessante notar como o excelente elenco (Ralph Fiennes, Benedict Cumberbatch, Dev Patel, Ben Kingsley, Richard Ayoade e Rupert Friend) assimilou o estilo de Anderson com um zelo impecável, digno de colaboradores de longa data, aqui ausentes, como Owen Wilson ou Jason Schwartzman. O filme é constituído por quatro curtas-metragens inspiradas noutros tantos contos de Dahl, sendo a primeira mais longa e complexa e as três seguintes mais breves e anedóticas. As histórias, aparentemente infantis e com conteúdos variáveis de disparate e perversidade em equilíbrio precário, são típicas de Dahl. O terceiro episódio, The Ratcatcher, talvez seja o exemplo mais evidente destas pulsões contraditórias, pois nele coexistem alguns momentos de mau gosto macabro e o final mais absurdo e deliberadamente inconsequente de todos. Como em todos os filmes de Anderson, ou talvez até um bocadinho mais do que noutros, o espectador de The Wonderful Story of Henry Sugar and Three More sente-se numa daquelas visitas guiadas tão frequentes na obra do realizador, entre cenários que sobem e descem por meio de roldanas, adereços aparentemente retro mas que não pertencem a nenhuma altura da história, movimentos de câmara súbitos e deliberados a que só falta o chiar das rodas sobre os carris montados no cenário, e assistentes que entram no plano para entregar um objecto ao actor. A respeito de Asteroid City (2023), escrevemos sobre a capacidade que este realizador tem de “controlar todos os pormenores do filme sem o tornar monotonamente sufocante, nem demasiado cerebral”, o que também se aplica nestas quatro curta-metragens, embora a alternância constante entre narração e acção se torne, por momentos, cansativa e exija um esforço adicional por parte do espectador para seguir a história, um esforço que poderia ser mais bem empregado a prestar atenção a outros aspectos do filme. Nesta altura da carreira, é duvidoso que Anderson venha a modificar de forma drástica o seu estilo. Vai ser muito interessante ir vendo como conseguirá continuar a trabalhar dentro deste registo e que estratégias e opções adoptará para evitar que este estilo se esclerose ou derive para uma autocaricatura estéril.
 
Outros filmes de Wes Anderson no Cinéfilo Preguiçoso: The Royal Tenenbaums (2001), Crónicas de França (2021), Asteroid City (2023). 

8 de setembro de 2024

The Neon Bible

Felizmente, a Cinemateca está a apresentar uma retrospectiva de Terence Davies. Esta semana, à laia de homenagem a este realizador britânico (1945-2023) e a Gena Rowlands (1930-2024), o Cinéfilo Preguiçoso viu The Neon Bible (1995), um filme baseado no romance epónimo de John Kennedy Toole (1989), narrado em flashbacks por um rapaz à janela de um comboio, recordando a infância e a adolescência vividas no contexto de repressão religiosa, racial, social e sexual do Mississípi, entre fins dos anos 30 e início dos anos 50. Não se faz justiça a The Neon Bible quando se descreve este filme, como o próprio Davies e outros fizeram, como mera obra de transição e experimentação – por ser a primeira adaptação literária deste realizador, por ter a sua primeira grande personagem feminina (a tia Mae, interpretada por Gena Rowlands), e por explorar o formato scope e diferentes géneros e estilos (filme de guerra, musical, denúncia do charlatanismo religioso, história de adolescência, expressão do gótico sulista, etc.). A indefinição de género, a imperfeição e a artificialidade quase teatral e ritualística que caracterizam The Neon Bible permitem-lhe mostrar maravilhosamente bem os mecanismos da memória. Até aqui, Davies tinha explorado cinematograficamente a sua biografia, em filmes como Distant Voices, Still Lives (1988) e The Long Day Closes (1992). Neste filme, consegue a estranha proeza de contar a sua própria história contando a história de uma personagem de outro autor. A experimentação de géneros pode ser encarada como uma espécie de revisitação da memória do cinema, em busca dos meios mais adequados para se exprimir. Mesmo a atitude do protagonista (David, interpretado em diferentes idades por Jacob Tierney e Drake Bell), assistindo desamparadamente à violência, loucura e pobreza da sua existência num universo em que as mulheres são as figuras principais, é a de um espectador de cinema, na medida em que se limita a observar, comovido e deslumbrado, sem grande possibilidade de intervenção. Quando, perto do fim do filme, David se aventura no reino da acção – com resultados catastróficos –, desencadeia a narração fragmentária da história durante a sua fuga de comboio. Antes disso, o famoso e belíssimo plano com o lençol branco que acaba por tapar o ecrã, transformando-se nele, ao som distante da banda sonora de E Tudo o Vento Levou (1939, Victor Fleming), faz recordar momentos semelhantes em A Estrada (Federico Fellini, 1954) e Fechar os Olhos (Víctor Erice, 2023) e lembra que fazer cinema pode ser captar imagens mal entrevistas no vazio através daquilo que só com dificuldade nos permite vislumbrá-las. Já houve quem salientasse que nem Terence Davies nem John Kennedy Toole são grandes contadores de histórias. Na verdade, não é contar histórias que lhes interessa mais. Como este filme bem demonstra, o cinema consegue fazer muito mais do que isso. A dada altura, nas diferentes vozes que captamos em The Neon Bible, entre discursos na rádio, encontros na igreja, sessões com pregadores e conversas na rua, a tia Mae pede a David que leia um poema de Longfellow («The Day is Done») em que se fala da possibilidade de a música das palavras e das coisas mais humildes obrigar as preocupações do dia a retirarem-se silenciosamente, e este filme, com toda a sua luz e escuridão, faz uma coisa parecida. Não é invulgar que os momentos em que determinado autor está numa encruzilhada sejam aqueles que de modo mais desarmado nos revelam toda a complexidade da sua obra.

Outros filmes de Terence Davies no Cinéfilo Preguiçoso: A Quiet Passion (2016); Benediction (2021).

1 de setembro de 2024

A Torre sem Sombra

O que terá levado a que o mais recente filme da já longa carreira do realizador chinês Zhang Lu tenha merecido honras de estreia em Portugal? A presença na secção competitiva do Festival de Berlim de 2023 poderá ter ajudado. Qualquer que seja a explicação, os cinéfilos devem congratular-se com esta pequena janela aberta para o território pouco conhecido do cinema chinês contemporâneo, porque A Torre sem Sombra (2023) tem diversos motivos de interesse. A personagem principal é Wentong, um crítico gastronómico recém-divorciado que tem uma filha que vive com a irmã e o cunhado. O encontro com uma jovem fotógrafa e a informação que recebe sobre o paradeiro do pai, que se afastara da família depois de cumprir pena num campo de reeducação, trazem alguma agitação a uma vida que parece estagnada. A Torre sem Sombra trata de temas muito comuns em cinema e literatura: as relações intergeracionais, a dificuldade em estabelecer e manter vínculos emocionais, o desenraizamento (tema recorrente em Zhang Lu, que tem ascendência coreana e realizou vários filmes na Coreia). A narrativa é algo fragmentada e abundante em transições intrigantes que por vezes nos levam a duvidar da realidade do que estamos a ver, sobretudo atendendo às numerosas referências a sonhos que as personagens fazem. Será que o reencontro entre Wentong e o pai ocorre realmente? O que significa a impressionante cena final, em que o pai aparece sentado no lugar onde estava o filho, antes do travelling que nos mostra o imponente pagode budista cuja sombra, segundo reza a lenda, está no Tibete? O espectador sai da sala sem certezas sobre o que realmente aconteceu, mas com a noção de que algo mudou na vida de Wentong. Pouco importa se esse “algo” teve que ver com os factos da vida ou simplesmente com uma noção mais nítida da sua relação com os próximos e do seu lugar na metrópole onde vive (uma Pequim filmada de forma tão discreta que parece uma cidadezinha de província). A Torre sem Sombra combina, como poucos filmes vistos recentemente, uma sobriedade de registo com uma intensidade emocional impressionante. Vale a pena, sem dúvida, estarmos atentos às surpresas que o calendário de estreias nos oferece!