Visto no cinema, A Ilha de Bergman (2021), de Mia Hansen-Løve, é um filme sobre as dificuldades práticas de ter uma vocação: os protagonistas são dois realizadores que vivem juntos e têm de gerir o trabalho artístico no quotidiano. Encontramos a influência de Bergman não só no espaço onde a acção principal decorre (os protagonistas passam uma temporada na ilha de Fårö), mas também na atenção ao tema das relações conjugais – há mesmo uma cena filmada na cama de Cenas da Vida Conjugal (descrito como o filme que provocou o divórcio de milhões de casais). A realizadora explicou, no entanto, que a maior influência de Bergman neste filme é indirecta e tem que ver com a originalidade e a independência da obra do realizador sueco, que fez os filmes que quis sem qualquer preocupação comercial e sabendo muitas vezes que abordava temas desagradáveis e que podiam afastar o público. Também Mia Hansen-Løve se caracteriza pelo mesmo espírito independente, insistindo em fazer filmes intensamente pessoais, que, na medida em que não incluem determinados parâmetros do cinema mais convencional, como um enredo delineado com simplicidade e fácil de narrar, correm abertamente o risco de serem desinteressantes para os espectadores que preferem histórias bem contadas. Convém, no entanto, notar que, ao contrário do que acontece em muitos filmes de Bergman, esta realizadora não trabalha só a escuridão das relações humanas; procura sempre uma espécie de luz e de esclarecimento no seu cinema. Os seus filmes são pessoais também por partirem sempre de uma inspiração autobiográfica, trabalhada indirectamente. Em A Ilha de Bergman há vários elementos que sugerem esse processo, os menores dos quais não serão, por um lado, a semelhança física (e até de voz e pronúncia) entre a actriz principal (Vicky Krieps) e a realizadora e, por outro, o facto de também Mia Hansen-Løve ser casada com um realizador (Olivier Assayas) na «vida real». Outro elemento associado ao processo de criação cinematográfica é o filme dentro do filme. Intitulado “The White Dress”, o filme que a personagem da realizadora descreve trabalha de outro ângulo a ambivalência em relação ao casamento que é explorada no filme principal; tem como protagonista mais uma realizadora; em alguns momentos é invadido por personagens do filme principal; e chega a recuperar um diálogo de Um Amor de Juventude (Mia Hansen-Løve, 2011), como se as suas personagens principais viessem desse filme (e a realizadora até pensou em dar-lhes os mesmos nomes das personagens de Um Amor de Juventude), que a própria Mia Hansen-Løve já explicou que conta a história de como se tornou realizadora: tal como a protagonista desse filme (que é arquitecta), também ela encontrou a sua vocação depois de um desgosto amoroso, aplicando ao trabalho as energias que antes tinha dedicado ao amor. Por todos estes motivos, A Ilha de Bergman é um filme essencialmente metacinematográfico, que pode ser usado como chave para toda a obra de Mia Hansen-Løve. Talvez por causa desta dimensão, e pela saturação de níveis de significado e pistas autobiográficas, parece menos orgânico, mais forçado e menos fluido do que outros da mesma cineasta, cuja obra, não obstante, continua a ser das mais interessantes que o cinema contemporâneo vem produzindo.
Outros filmes de Mia Hansen-Løve no Cinéfilo Preguiçoso: Éden (2014); L’Avenir (2016); Maya (2018).