Em O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (2016), seguimos o percurso de Fernando, um ornitólogo que se dedica à observação dos hábitos de várias espécies de aves enquanto desce o rio Douro de caiaque, numa zona isolada e quase desprovida de presença humana. Uma distracção na aproximação a uns rápidos quase precipita o seu afogamento. Acaba por ser salvo por duas improváveis peregrinas chinesas, mas esse é apenas o começo de uma sequência de aventuras e encontros, cada vez mais bizarros, repletos de referências etnográficas, mitológicas e sobretudo cristãs. De forma progressiva, e sem concessão a qualquer lógica ou realismo, Fernando metamorfoseia-se em Santo António e acaba o filme na berma da estrada, a caminho de Pádua; não falta sequer um sermão aos peixes. Essa transformação ocorre em paralelo com a substituição gradual do actor principal, Paul Hamy (uma agradável surpresa), pelo próprio realizador – até à sequência final do filme, em que João Pedro Rodrigues assume totalmente o papel de Fernando/António. A multiplicidade de alusões, citações e referências é desconcertante. Fica a impressão de que, mais do que impor uma qualquer leitura simbólica coerente, João Pedro Rodrigues pretendeu descrever um percurso do registo realista para o registo onírico e fantástico, da lucidez para a alucinação. O Ornitólogo dispensa densidade hermenêutica; é visualmente empolgante e poderoso na sua singularidade de objecto desligado de qualquer justificação ou contexto. A singularidade não exclui a tentação de apontar semelhanças com Veredas (1977), de João César Monteiro (onde o Portugal profundo é palco de intersecções inesperadas entre o mito e a realidade) e O Desconhecido do Lago (2013), de Alain Guiraudie (o elemento líquido, a proximidade entre o desejo e a morte…). João Pedro Rodrigues recebeu o Leopardo para Melhor Realização no Festival de Locarno, por este filme.