Esta semana, o Cinéfilo Preguiçoso viu dois filmes – The Card Counter (Paul Schrader, 2021) e A Pior Pessoa do Mundo (Joachim Trier, 2021) – em que a narração em voz-off desempenha um papel interessante. O filme de Paul Schrader, sobre um ex-soldado (William Tell/Oscar Isaac) condenado por actos de tortura em Abu Ghraib que aprende a contar cartas e a jogar na prisão e depois se torna jogador profissional, é uma obra-prima de concisão e contenção. Na verdade, o jogo que mais interessa ao protagonista é aquele que começa com a aposta de redenção que faz quando vê uma oportunidade para salvar o filho de um companheiro de armas que, tal como ele, servira de bode expiatório para os abusos dos superiores. Também o Travis de Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976, com argumento de Paul Schrader) tinha uma motivação equivalente, ainda que mais abrangente: enquanto Travis queria salvar o mundo e via corrupção moral em toda a parte, William Tell já ficaria contente se salvasse uma pessoa que fosse. Esta personagem distingue-se ainda pelo facto de, apesar de ter feito parte da violência, ter conseguido sobreviver-lhe, ao contrário de figuras semelhantes de outros filmes. Narrando o registo que o protagonista faz das suas memórias, a voz-off acompanha o desenvolvimento de uma consciência e de uma vida interior que teve início na prisão. The Card Counter é um filme irrepreensível, embora não seja tão complexo ou ambicioso como No Coração da Escuridão (Paul Schrader, 2017). Sublinhe-se ainda a extraordinária contenção da cena do confronto final entre Tell e o homem que o transformou num torcionário, tão contrária aos hábitos de Schrader (basta recordar os finais de Taxi Driver e No Coração da Escuridão). Por sua vez, A Pior Pessoa do Mundo (2021), terceira parte de uma trilogia sobre Oslo, é o primeiro filme do realizador norueguês Joachim Trier que o Cinéfilo Preguiçoso vê. Apesar de não o ter convencido totalmente, despertou algum interesse pela restante obra deste autor. O filme segue uma história relativamente banal de uma crise, situação pela qual quase todos passamos na juventude ou depois, quando sentimos que precisamos de perceber o que queremos realmente fazer e como queremos viver. O factor distintivo aqui talvez seja a ironia intrigada com que a protagonista (Julie/Renate Reinsve, que por este papel recebeu o prémio de melhor actriz em Cannes) é acompanhada pelo realizador e pela narração em voz-off, assumida por uma actriz mais velha (Ine Jansen). O argumento é escrito pelo próprio Joachim Trier e por Eskil Vogt. Pelo facto de serem dois homens de meia-idade, um crítico já comentou que talvez não sejam as pessoas mais adequadas para compreender o ponto de vista de uma mulher de trinta anos – e a voz-off, um pouco perdida no filme e não sabendo bem o que fazer das acções e decisões da protagonista, é um sintoma deste desajuste. Julie é tratada como se fosse relativamente misteriosa e opaca, quando, na realidade, é igual a tanta gente. A estranheza que esta perspectiva gera não é totalmente desinteressante, mas não só não é suficiente para redimir o filme da mediania, como talvez acabe também por o prejudicar. O título chama a atenção para uma questão – como é ser uma boa ou má pessoa? – que poderia ter sido mais bem desenvolvida. Com um enredo igualmente irónico sobre temas semelhantes, passou recentemente nas salas As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (Emmanuel Mouret, 2020), que, apesar de não ter dado tanto que falar, é um filme muito melhor.
Outros filmes sobre jogo no Cinéfilo Preguiçoso: House of Games (David Mamet, 1987); Jogo da Alta-Roda (Aaron Sorkin, 2017).