O
filme A Portuguesa (2018), de Rita Azevedo Gomes, gravado recentemente
na RTP2, foi inspirado pelo belíssimo conto com o mesmo título do livro Três Mulheres, de Robert Musil. De acordo com a realizadora, Agustina
Bessa-Luís adaptou o texto de Musil produzindo um guião de sete ou oito
páginas, só com diálogo. Relendo o conto, facilmente se conclui que a
escritora, para o melhor e para o pior, destacou do texto tanto aquilo que nele
havia de Agustina como aquilo que em Agustina houve de Musil: alguns aforismos,
o interesse pelas relações de poder, certos contrastes entre homens e mulheres.
O enredo do filme é mínimo, girando em torno da relação, escassa em
acontecimentos, entre um nobre obcecado pela guerra e a sua mulher (a
Portuguesa), que espera por ele num castelo quase em ruínas no meio de nenhures.
A partir do conto e do guião, Rita Azevedo Gomes e o director de fotografia
Acácio de Almeida realizaram um trabalho admirável de convocação e organização
de imagens, muito mais importante do que o enredo de contornos vagos com que
estas se articulam. Sem dúvida, Rita Azevedo Gomes partilha com Manoel de
Oliveira (com quem trabalhou no filme Francisca, de 1981) e outros
grandes realizadores a ideia de que as palavras são apenas um elemento entre
outros no cinema, ao mesmo nível da banda de som, entre o canto dos pássaros. Isto
não significa desvalorizá-las, antes pelo contrário: a fé dogmática nos
elementos significantes (enredo, diálogo), predominante no cinema mais
convencional, é que reduz a dimensão verbal e as peripécias a meros veículos
esvaziados de interesse. Os actores, entre os quais se destaca Clara
Riedenstein (nossa conhecida por ter participado no filme John From, de
João Nicolau), funcionam mais como recursos pictóricos do que como seres de palavras.
As cores e os animais (cães, coelhos, veados, gatos, gansos, lobos, além de um
insecto misterioso que pica o Senhor von Ketten, marido da Portuguesa) são tão
ou mais importantes do que as figuras humanas, aproximando o cinema da pintura.
A Portuguesa é um filme lento e sereno em que todos os planos revelam um
trabalho minucioso que, no entanto, nunca produz resultados decorativos. Este
trabalho de composição, já visível (num registo muito diferente) em Correspondências
(2016), insere-se numa tendência, que percorre o cinema português moderno, de
exploração do plano, em que o estatismo da câmara é contrariado pela atenção aos
pormenores e à profundidade de campo: além de Oliveira, pense-se em João César
Monteiro ou José Álvaro Morais. Eventuais influências ou filiações à parte, A
Portuguesa reflecte o talento e a maturidade de uma realizadora muito interessante, que devia ser mais conhecida.