24 de novembro de 2019

Correspondências | Sophia, na Primeira Pessoa


Perante a escassez de estreias interessantes em sala, o Cinéfilo Preguiçoso optou por escrever sobre dois filmes que têm em comum a figura de Sophia de Mello Breyner Andresen, cujo centenário se comemorou recentemente. Correspondências (2016), de Rita Azevedo Gomes, visto em Setembro na Cinemateca, tem como base as cartas trocadas entre Sophia e Jorge de Sena. Transformar um texto epistolar em matéria de cinema é, obviamente, uma tarefa difícil. A realizadora optou por recrutar um vasto elenco (se é que o termo faz algum sentido aqui) para dar voz às cartas dos dois escritores, em cenários domésticos ou em plena natureza, sós ou em grupo, protagonizando uma cadeia de breves encenações ou quase-ficções que, pelo seu minimalismo, sublinham a importância da palavra falada. Desse elenco fazem parte actores profissionais como Luís Miguel Cintra ou Rita Durão, mas também pessoas ligadas a outros ofícios do cinema, como Jean-Paul Mugel (som) ou Judy Shrewsbury (guarda-roupa), assim como realizadores como Edgardo Cozarinsky. Esta heterogeneidade adequa-se ao espírito do filme: o que é relevante não é a expressividade ou o talento dramático de quem fala, mas sim a sua voz e a sua presença – a presença física que contrasta com a ausência mútua, inerente à comunicação por carta e tão lamentada pelos dois correspondentes. Embora alguns segmentos resultem demasiado elaborados e artificiais, Correspondências é uma homenagem muito pessoal e esteticamente arrojada a duas figuras maiores da cultura portuguesa do século XX que consegue captar a dupla amargura do exílio e da podridão política e social durante a ditadura. Sophia, na Primeira Pessoa (2019), de Manuel Mozos, transmitido recentemente pela RTP, aproxima-se mais do figurino clássico do documentário. O filme é constituído por imagens de arquivo, entrevistas à escritora e imagens contemporâneas recolhidas em lugares ligados à sua biografia. O respeito pela ordem cronológica é absoluto. Mozos nunca transmite a pretensão de analisar a obra de Sophia ou de oferecer revelações sobre a sua personalidade, mas tem o mérito de tratar com equilíbrio as suas diferentes facetas, incluindo a intervenção política. Essa pluralidade é reforçada em alguns dos momentos mais interessantes de Sophia, na Primeira Pessoa: aqueles em que se estabelece uma dissociação entre os versos declamados pela autora, na cadência empolada que lhe era característica, e as imagens corriqueiras e terrenas, por exemplo cenas da faina da pesca. (Curiosamente, um dos momentos mais estranhos e belos de Correspondências envolvia também um peixe e instruções sobre como o amanhar.) Nestes momentos estabelece-se um diálogo entre palavra e imagem que faz justiça à complexidade de uma autora já tão abordada e discutida, muitas vezes de forma simplista e unidimensional. Pena é que estes momentos sejam escassos e não contrariem a impressão de alguma falta de ousadia e ausência de perspectiva pessoal neste documentário.