Segundo o
realizador François Ozon, o filme Uma
Nova Amiga (2014), estreado em Lisboa ao fim de uma longa espera e de
inúmeros falsos alarmes, foi adaptado livremente do conto «The New Girlfriend»,
de Ruth Rendell, num tom e num espírito deliberadamente próximos dos da série Alfred Hichcock Presents. Dentro da obra
de Hitchcock, talvez o filme Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958)
seja uma referência ainda mais importante do que a série televisiva. Tal como
Madeleine Elster/Judy Barton (Kim Novak) encarna a figura da amante morta de
Scottie (James Stewart) em Vertigo, também
David/Virginia (Romain Duris) encarna Laura, a amiga morta de Claire (Anaïs
Demoustier), em Uma Nova Amiga. A
atmosfera onírica das recordações do passado das amigas na casa de infância de
Laura e o quadro que representa Laura recordam igualmente Vertigo. David/Virginia é um homem que se sente melhor com a
aparência feminina ou uma mulher num corpo de homem? Claire aproxima-se de
David/Virginia simplesmente porque ele substitui a sua amiga morta e lhe
permite consumar uma relação que nunca teve com ela, ou porque se sente atraída
tanto por David como por Virginia? Em todos os seus filmes, Ozon esteve atento
à ambiguidade sexual das personagens e ao modo como os papéis associados ao
género podem ser simplistas e enganadores. Uma
Nova Amiga não tenta resolver estas dificuldades: o seu objectivo parece consistir
em retratar a circulação de afectos, desejos e memórias, sem deixar entrever
soluções. No livro The Argonauts
(2015), que aborda um tema próximo deste filme, Maggie Nelson sugere que tentar
definir a identidade sexual das pessoas é menos importante do que deixá-las
serem quem são, sem terem de se explicar permanentemente. A questão mais
importante deste filme de Ozon é precisamente esta liberdade, defendida por
Nelson, de se ser como se é. A concessão dessa liberdade a David/Virginia é o factor
que o faz (muito melodramaticamente) despertar de um coma e que abre caminho
para um final idílico. Só na aparência este final faz concessões ao
sentimentalismo: mostrar a felicidade no final dos percursos tão acidentados
destas personagens é um acto quase revolucionário.