28 de janeiro de 2018

Jogo da Alta-Roda


O Cinéfilo Preguiçoso é um grande fã de Aaron Sorkin, mais conhecido como argumentista de séries como The West Wing e The Newsroom ou de filmes como Rede Social e Steve Jobs. Em Jogo da Alta-Roda (2017), além de assinar o argumento, baseado no livro de memórias Molly’s Game, Sorkin estreia-se na realização de longas-metragens para cinema. O filme segue a história de Molly Bloom (Jessica Chastain), uma esquiadora de alta competição que, depois de sofrer um acidente numa prova que poderia assegurar a sua participação nos Jogos Olímpicos, decide abandonar o desporto e, um pouco por acaso, começa a organizar jogos de póquer com ricos e famosos. Pela sua vulnerabilidade, Jessica Chastain é uma escolha interessante para desempenhar o papel desta mulher fortíssima, várias vezes derrubada pelas circunstâncias, mas que nunca desiste. Desde pequena, Molly é educada para vencer – ao ponto de, na idade adulta, depois de ter abandonado a carreira desportiva, continuar a desejar obter vitórias, embora sem saber exactamente o que pretende ganhar. Jogo da Alta-Roda é um filme interessante mesmo para quem embirre com temas como drogas, máfia e desporto. Talvez o ponto mais fraco seja a insistência numa explicação psicológica para o comportamento da protagonista: a sua relação com um pai exigente e ao mesmo tempo cheio de falhas. Entre outras características típicas dos argumentos de Sorkin, contudo, encontramos aqui o discurso rápido e espirituoso, personagens inteligentes que, mesmo assim, cometem erros ingénuos, e a exploração de temas e ideais como a honra e a perseverança em face da adversidade – sem, ao mesmo tempo, o filme ostentar um moralismo irritante. (Por exemplo, é um prazer – e um alívio – ouvir a protagonista dizer, perto do fim: «Será que aprendi muito com esta experiência? Nem por isso.») A estrutura do filme (alternância entre analepses e um momento narrativo presente em ambiente de inquérito judicial) também faz lembrar a de Rede Social. Por se tratar de um filme sobre póquer e pelo facto de o discurso das personagens ser tão cativante, recordamo-nos imediatamente de David Mamet e ficamos à espera de uma reviravolta para a desonestidade, que nunca acontece – e talvez esta seja não só a maior surpresa do filme mas também a jogada mais importante da protagonista. Tal como Molly não se deixa comprar pela proposta do procurador, Sorkin não se vende ao fascínio generalizado pela venalidade e pelo cinismo cultivado por tantos filmes e séries americanos – e isso é refrescante.

21 de janeiro de 2018

Chama-me pelo Teu Nome

Adaptado do romance homónimo de André Aciman, Chama-me pelo Teu Nome (2017) é um filme realizado por Luca Guadagnino. James Ivory, cuja extensa carreira como realizador dispensa apresentações, assina o argumento. O enredo, que tem lugar na Lombardia no verão de 1983, é protagonizado por Elio (Timothée Chalamet), um adolescente multilingue e de temperamento artístico, e Oliver (Armie Hammer), um americano de proporções hercúleas que visita a família de Elio para trabalhar com o pai deste, um professor de arqueologia. Chama-me pelo Teu Nome não traz nada de essencialmente novo ao subgénero coming of age e ao tema da paixão estival em cenário idílico, explorada até à exaustão na história do cinema. A aproximação entre Elio e Oliver é mostrada de forma bastante clássica, não faltando os avanços, recuos, elipses, hesitações e mal-entendidos. A «reconstituição» dos anos oitenta contrasta com o carácter fora do tempo da relação, acentuado pelas descobertas arqueológicas no mar. Alguns dos maneirismos de Guadagnino, toleráveis nas suas obras anteriores (em particular no soberbo Eu Sou o Amor, de 2009, mas também no mais desequilibrado Mergulho Profundo, de 2015), resultam aqui deveras irritantes, talvez por se tratar de um filme com um tom mais calmo e isento de erupções emocionais muito explícitas, onde qualquer truque ou exibicionismo se torna mais conspícuo. Um exemplo é a maneira como o realizador explora a profundidade de campo para acentuar a tensão dramática entre duas personagens. O recurso a metáforas visuais eróticas envolvendo fruta fresca também deixou o Cinéfilo Preguiçoso um tanto céptico, embora se enquadre na tendência de Guadagnino para esticar a corda e incluir momentos de gosto duvidoso em todos os seus filmes. Ainda assim, o filme vale pela maneira discreta mas eficaz como nos mostra uma época relativamente próxima mas que parece já tão distante, pelo modo como, apesar da atmosfera idílica, consegue captar algumas das correntes subterrâneas típicas do melodrama, pela fotografia belíssima (da responsabilidade de Sayombhu Mukdeeprom, habitual colaborador de Apichatpong Weerasethakul e que trabalhou com Miguel Gomes em As Mil e Uma Noites, de 2015) e pela magnífica banda sonora que inclui três canções de Sufjan Stevens, além do excelente primeiro movimento de Hallelujah Junction, de John Adams.

14 de janeiro de 2018

O Meu Belo Sol Interior


O Meu Belo Sol Interior, de Claire Denis (2017), foi inspirado pelo famoso livro Fragmentos de Um Discurso Amoroso, em que Roland Barthes reflecte sobre os dilemas das relações afectivas – não só heterossexuais. No filme seguimos as aventuras sentimentais de uma pintora (Juliette Binoche) de meia-idade com os homens com quem se vai relacionando. O Meu Belo Sol Interior assenta em confrontos verbais longos e cansativos em que os parceiros da protagonista debitam as banalidades que se convencionou serem tipicamente masculinas, suscitando uma insatisfação que também se convencionou ser tipicamente feminina: enquanto os homens pretendem apenas relações breves, a protagonista procura uma relação mais duradoura. O facto de as banalidades discursivas ficarem quase todas a cargo dos homens, quando o próprio discurso feminino sobre o amor pode ser igualmente rico em dislates e absurdos, não contribui para tornar o filme interessante. Além disso, enquanto o livro de Barthes explora subtilezas e percepções mínimas, O Meu Belo Sol Interior fica à superfície, insistindo em lugares-comuns para os quais a paciência do Cinéfilo Preguiçoso se vai mostrando escassa. Parece ser intenção do filme proceder a uma abordagem irónica ao papel das palavras na vida, nas relações humanas e no cinema: a protagonista surge quase sempre enredada em conversas sem saída e só encontra alguma paz e felicidade quando o silêncio se impõe. É inevitável, no entanto, por um lado, duvidar-se um pouco da ironia de diálogos que já ouvimos em tantos sítios diferentes e, por outro, sentir falta de protagonistas femininas que não tenham a vida afectiva como preocupação exclusiva – em contraste, ver, por exemplo, a personagem de Isabelle Huppert no filme L’Avenir, de Mia Hansen-Løve. Claire Denis é (a par, por exemplo, de Jean-Claude Brisseau ou Alain Guiraudie) uma daquelas realizadoras cuja originalidade e ousadia contribuem muito mais para a riqueza do cinema francês do que alguns nomes bem mais mediáticos. Fica-se à espera de um filme seu que se aproxime da excelência do extraordinário Beau Travail (1999), do belíssimo 35 Rhums (2008), ou ainda desse maravilhoso filme-entrevista a Jacques Rivette (co-realizado por Serge Daney) chamado Jacques Rivette, le Veilleur (1990).

7 de janeiro de 2018

Roda Gigante | O Amante de Um Dia

O Cinéfilo Preguiçoso, além de desejar um feliz 2018 a todos os seus leitores, viu dois filmes durante a época festiva. Em Roda Gigante (2017), Woody Allen mostra mais uma vez o seu interesse por personagens femininas poderosas mas emocionalmente frágeis e a quem os incidentes da vida e as suas próprias escolhas encurralaram num beco sem saída – recordemo-nos, por exemplo, de Melinda e Melinda (2004) e de Blue Jasmine (2013). A personagem principal, Ginny (Kate Winslet – excelente como sempre), empregada de mesa num restaurante do parque de diversões de Coney Island, falhou por completo uma carreira de actriz sobre a qual continua a fantasiar. Ironicamente, esse desencanto coincide com a percepção de que o destino a obriga permanentemente a representar um papel na vida real. Esta ideia da vida como representação é um leitmotiv do filme, reforçado pelo narrador (Justin Timberlake), um nadador-salvador que também é estudante de dramaturgia e que se envolve romanticamente com Ginny e com a enteada desta (Juno Temple). Para lá desta ideia principal e das fantasias polícromas que o grande Vittorio Storaro se permite, reforçando o lado kitsch e artificial do filme, passado quase exclusivamente num ambiente de feira, Roda Gigante acrescenta pouco à filmografia de Allen. Da mesma maneira, O Amante de um Dia (2017) é o tipo de filme incapaz tanto de conquistar os mais refractários à estética de Philippe Garrel como de afugentar os seus fãs. Mais uma vez, Garrel mostra-nos personagens aprisionadas nas armadilhas do amor e do ciúme, embora plenamente conscientes destas e resignadas com as consequências. A cidade de Paris, filmada num preto-e-branco sóbrio e quase lúgubre (obrigado, Renato Berta), é o cenário apropriado para um enredo simples de matriz realista, mas que deixa espaço para um lirismo discreto. Ninguém sai indemne dos filmes de Garrel; contudo, a resiliência moral das personagens propicia frequentemente finais quase felizes, em que o instinto de sobrevivência, mais do que a sabedoria, vem ao de cima.