24 de setembro de 2023

Um Nome para o Que Sou

No documentário Um Nome para o Que Sou (Marta Pessoa, 2022, visto num canal de televisão), recupera-se o livro As Mulheres do Meu País, de Maria Lamas (publicado em fascículos entre 1948 e 1950), e tenta-se compreender a sua importância actual, refazendo o percurso que Lamas fez por Portugal nessa época para dar a conhecer a realidade em que viviam as mulheres portuguesas. O Cinéfilo Preguiçoso chegou ao documentário depois de ler o excelente livro Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro, de Susana Moreira Marques (Companhia das Letras), que foi desenvolvido a partir do comentário em voz-off do filme. Um Nome para o Que Sou é um documentário que se dispersa um pouco entre várias ideias, nem todas bem exploradas. As mais interessantes relacionam-se com os contrastes e/ou proximidades entre o passado que o livro investiga e o presente em que vemos o filme. O que resulta bem no livro nem sempre resulta no filme: a vertente mais auto-reflexiva e pessoal do comentário em voz-off parece desnecessariamente palavrosa. Como se salienta a dada altura numa imagem que mostra um texto, no cinema convém filmar em vez de falar, mas isso nem sempre acontece neste documentário. Outro ponto fraco é o uso um tanto decorativo de paisagens que ficam por identificar. Os melhores momentos são aqueles em que as ideias são exploradas através das imagens e não só das palavras: os documentos e apontamentos de Maria Lamas, as fotografias e ilustrações que usou no livro, e as entrevistas a algumas mulheres que aparecem nas fotografias, ou às suas descendentes, em que se comentam as diferenças entre o passado e o presente. Uma das sequências mais especiais do filme é aquela em que jovens dos nossos dias são convidadas a ler excertos do livro de Maria Lamas: as diferenças entre as raparigas de agora e as do passado, a forma como se vestem e falam, o peso e o desconforto do livro nas mãos, as dificuldades ou o entusiasmo da leitura em voz alta, falam por si. O filme mostra com sucesso  a importância do livro de Maria Lamas e o arrojo da tarefa que levou a cabo, numa época em que as mulheres ainda eram mais secundarizadas do que actualmente. O facto de as imagens captadas e descritas por Maria Lamas parecerem, mesmo às descendentes das mulheres ali representadas, vir de um mundo distante e quase mítico que nem sempre temos a certeza de ter existido mostra bem que continua a ser necessário dar visibilidade a estas mulheres e a este livro, que está a sair outra vez em fascículos, com o jornal Público.

17 de setembro de 2023

Retratos Fantasmas

A nostalgia cinéfila é um filão abundante, como aliás se tem constatado neste espaço. Depois de ver várias ficções, mais ou menos autobiográficas, sobre a memória do cinema, o Cinéfilo Preguiçoso interessou-se pelo documentário Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, estreado recentemente. O realizador estabelece um paralelo entre um espaço pessoal (a casa familiar no Recife) e vários espaços colectivos, porém fortemente associados a memórias pessoais (as salas de cinema dessa mesma cidade, desaparecidas ou radicalmente transformadas). A coerência entre estes dois pólos é assegurada pelo facto de a casa ter sido o cenário de muitos dos filmes da primeira fase da carreira deste realizador, incluindo Aquarius (2016) e O Som ao Redor (2012). Ficamos a conhecer a casa graças a imagens do arquivo pessoal do cineasta, mas também a cenas desses filmes e a curtas reconstruções ficcionadas, numa mise en abyme que reforça a ideia da fluidez das fronteiras entre recordações, realidade e histórias filmadas. Numa das cenas mais conseguidas, Mendonça Filho descreve uma ocasião em que, quando estava em casa, estranhou ouvir o ladrar de um cão dos vizinhos que tinha morrido muitos anos antes, até perceber que o som provinha da televisão em que passava um dos seus filmes. A secção de Retratos Fantasmas dedicada à recensão e evocação dos cinemas do centro do Recife tem um formato mais clássico: não faltam as imagens de arquivo, a exploração do contraste entre o esplendor do passado e a degradação presente, bem como uma entrevista comovente com um projeccionista. A relação com a primeira parte do filme é clara: a formação do cineasta passa tanto pela exploração da casa enquanto cenário como pela sua passagem pelas salas de cinema. Mendonça Filho evita o sentimentalismo fácil em que muitos outros realizadores caem – enquanto estes apelam à memória colectiva dos espectadores, ele não se afasta de um percurso narrativo e evocativo muito pessoal. O espectador pode rever-se nesse percurso, mas não existe aqui, felizmente, aquele movimento do particular para a experiência colectiva, à procura de uma catarse consensual e saudosista. O denominador comum de todas as facetas deste filme são os fantasmas mencionados no título: vozes, pessoas, lugares e experiências que deixaram de existir, mas subsistem na memória dos vivos e nos filmes. Quando os próprios filmes, ou as ocasiões ou os lugares apropriados para os vermos, desaparecem, resta-nos tentar fazer perdurar a memória desse processo irreversível de perda. Retratos Fantasmas termina com um magnífico e surpreendente episódio ficcional, em jeito de epílogo. A história do motorista da Uber com o dom da invisibilidade funciona como eco perfeito da ideia central do filme. O desaparecimento literal do motorista dá, em retrospectiva, outra vivacidade aos numerosos desaparecimentos a que assistimos durante a hora e meia anterior e transporta-nos para os terrenos do cinema fantástico, onde tudo pode acontecer, incluindo a anulação dos efeitos do tempo.
 
Outros filmes recentes inspirados pela nostalgia do cinema: Babylon (Damien Chazelle, 2022); Os Fabelmans (Steven Spielberg, 2022); Império da Luz (Sam Mendes, 2022).

10 de setembro de 2023

Era Uma Vez na América

Foi uma surpresa encontrar numa lista de títulos considerados proustianos o último filme de Sergio Leone: Era Uma Vez na América (1984). Baseado no romance The Hoods, de Harry Grey (pseudónimo de um ex-gângster judeu), o filme acompanha cinco décadas da vida de um grupo de amigos que logo na infância mostram ser criminosos implacáveis. Começa com duas cenas violentas de vingança e passa para um antro de ópio em que Noodles (Robert De Niro) se refugia para escapar às consequências de uma denúncia supostamente bem-intencionada, mas que, por ter consequências trágicas, o obriga a fugir de Nova Iorque e a assumir uma identidade falsa durante trinta e cinco anos. Através de flashbacks em que as recordações, as incompreensões e os devaneios deste protagonista se confundem, o espectador vai sendo exposto a imagens de uma América com dimensão mítica, entre as décadas de 1920 (nos guetos de judeus do Lower East Side de Manhattan), 1930 (época da Lei Seca e dos seus clubes exuberantes) e 1960 (tempo do predomínio do crime em Nova Iorque). Desde o princípio, no entanto, a ligação com Proust é inegável, não só pela importância da memória e da reconstituição do passado e pela longa duração do filme (a versão completa tem 227 minutos), mas também porque há citações quase directas da Recherche, entre as quais o acto de espreitar por uma abertura na parede, a presença clandestina de Veneza (onde é filmada a cena do restaurante que Noodles manda fechar para um jantar a sós com Deborah), e o próprio regresso do protagonista a Nova Iorque em 1968, para visitar vivos e mortos e, como o narrador em Le Temps Retrouvé, assistir a uma espécie de ressurreição. Talvez o momento proustiano mais evidente e inesquecível seja aquele em que, quando perguntam a Noodles o que fez durante trinta e cinco anos de ausência, ele responde, reformulando o início da Recherche: «Levantei-me cedo.» Apesar de as personagens de Era Uma Vez na América serem gângsteres impiedosos, as cenas de violência são lentas e estilizadas, quase oníricas, e os temas mais importantes são a amizade («tive um amigo, foi uma bela amizade»), o amor, a traição e a inveja. A relação principal do filme, entre Noodles/De Niro e Max/James Woods tem uma dimensão arquetípica em que, expressando toda a intensidade e violência da amizade masculina, os amigos se traem mutuamente, cada um roubando a vida do outro, ou pensando que a rouba. Talvez o filme tivesse ganhado com a escolha de um actor menos histriónico e superficial do que James Woods para desempenhar o papel de Max. De Niro, pelo contrário, aprofunda a densidade psicológica de uma personagem que, por não conhecer outra linguagem, precisa de recorrer à violência até para expressar um amor quase eterno (a tristíssima cena de violação de Deborah/Elizabeth McGovern). Mesmo para quem detesta filmes de gângsteres, Era Uma Vez na América tem uma beleza indiscutível tanto do ponto de vista visual como no que toca à manipulação narrativa. Inicialmente, devido a todas estas características invulgares, o filme foi mal compreendido: a primeira versão americana sofreu uma mutilação de noventa minutos que muito prejudicou o filme, tendo sem dúvida sido factor decisivo para o seu fracasso comercial. Em 2012, foi divulgada uma versão restaurada, com a intervenção dos filhos de Leone e da Film Foundation de Martin Scorsese,  que ajudou a recuperar a visão inicial do realizador. Permanecem algumas imperfeições, mas estas até reforçam a dimensão mítica desta obra, que, com Era Uma Vez no Oeste (1968) e Aguenta-te, Canalha (1971), faz parte de uma trilogia em que Sergio Leone investiu muito tempo e pensamento e que foi determinante para o estatuto que conquistou, depois de durante muito tempo ter sido considerado um mero autor de westerns spaghetti.

Outros filmes proustianos no Cinéfilo Preguiçoso: A Paixão de Swann (Volker Schlöndorff, 1984); All the Vermeers in New York (Jon Jost, 1990); A Grande Beleza (Paolo Sorrentino, 2013); Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro (Abdellatif Kechiche, 2017).