29 de outubro de 2023
Rostos
22 de outubro de 2023
Sombras
Esta semana, a título excepcional, publicamos o texto escrito para a apresentação do filme Sombras (John Cassavetes, 1959) no Close-up, Observatório de Cinema de 2023. Muito obrigada a Vítor Ribeiro pelo simpático convite para estarmos presentes.
Como se apresenta um filme? Os filmes não precisam necessariamente de apresentação. Até podemos vê-los por acaso, entrando simplesmente num cinema e escolhendo um título sem sabermos qual é o tema nem quem é o realizador, ou, fazendo zapping na televisão, quando paramos se as imagens ou os diálogos nos chamam a atenção.
Um filme que se torna importante para nós e que não esquecemos conquista-nos independentemente do realizador ou até das histórias que conta. As imagens atraem-nos, os diálogos parecem-nos logo estranhamente próximos ou distantes: temos a sensação de que já tivemos aquelas conversas com alguém, ou então que nunca ninguém nos diria aquelas coisas (e ficamos tristes ou contentes por esse motivo).
Quando vemos Sombras, de John Cassavetes, sentimo-nos imediatamente próximos das personagens: três irmãos ligados às artes que moram juntos num pequeno apartamento em Nova Iorque. Dois irmãos são músicos (um cantor e um trompetista), mas ainda não estão bem instalados na carreira, e têm uma irmã mais nova, que ainda não descobriu a sua vocação (a dada altura, para grande consternação de um amigo, escreve um conto sobre uma rapariga que beija um desconhecido na rua, portanto pode vir a ser escritora, mas não sabe ainda, também pode vir a ser pintora).
Não conseguimos imaginar as personagens do filme sem as suas preocupações artísticas. As conversas que têm são sobre arte, definem-se com a ligação que têm à arte. Ao mesmo tempo, têm os pés bem assentes na terra, falam de problemas concretos, relacionados com a carreira, o trabalho e o dinheiro. E nós identificamo-nos com estas preocupações. Podíamos ter conversas parecidas.
De onde vem esta sensação de vermos pessoas como nós a viverem as suas vidas?
Para começar, Sombras é um filme sem o peso das convenções do cinema americano da mesma época: dramatismo da história, narrativa clássica, grandiloquência, grandes acontecimentos e grandes afirmações. Cassavetes é uma espécie de óvni, embora o cinema americano independente das décadas seguintes se tenha desenvolvido a partir da obra dele. Para encontrarmos filmes com uma estética mais próxima, talvez tenhamos de procurar na Nouvelle Vague: O Acossado, de Godard, estreou em 1960. (Se quisermos um equivalente português próximo, recordamos que, em 1964, o filme Belarmino, de Fernando Lopes, também segue o protagonista pelas ruas da cidade.)
É o primeiro filme de Cassavetes – que chegou a dizer que, dentro da sua obra, era o seu preferido. Quando realizou Sombras, tinha 30 anos, era actor e dava aulas a aspirantes a actores, encorajando-os a improvisar.
Nesta época, cultivava-se muito a técnica de representação do Método, que era tudo menos improvisação. Os actores faziam um trabalho muito sério de introspecção para compreenderem a história, as motivações e as emoções das personagens a partir das suas próprias experiências. Cassavetes, contudo, preferia que fossem os próprios actores a desenvolver as personagens através das suas próprias palavras e acções. Sombras surgiu a partir dos exercícios de improvisação dos actores nas aulas de Cassavetes.
Ainda assim, convém notar que o filme que vamos ver a seguir assenta num guião bem trabalhado. O realizador filmou uma primeira versão mais improvisada, mas quando a viu, decidiu aperfeiçoar o guião para o tornar mais coerente. O que vamos ver é uma versão aperfeiçoada, que foi desenvolvida a partir da improvisação, mas não é totalmente improvisada.
O título do filme dá um pouco que pensar. Será que as sombras são as tonalidades de pele que distinguem fisicamente os três irmãos, entre o negro, o castanho e o branco? Com personagens assim, facilmente o racismo poderia ser o tema principal do filme – e, se Sombras tivesse sido realizado em 2023, por outro realizador, talvez fosse. No filme de Cassavetes, no entanto, a cor da pele das personagens é apenas um assunto entre outros, muito mais interessantes. Há um imbróglio com um namorado da personagem feminina, quando este percebe que ela afinal não é branca, apesar de ter pele branca (vá-se lá saber o que quer dizer «ser branco»!), mas a vida continua.
Para vermos a diferença entre Sombras e outros filmes americanos da mesma época, basta dizer que no mesmo ano – 1959 – estreou um filme extraordinário de Douglas Sirk, intitulado Imitação da Vida, em que há uma situação parecida: uma personagem feminina de pele branca, mas com mãe negra. No filme de Douglas Sirk, esta questão tem consequências trágicas e grande impacto melodramático. Em Sombras, as coisas continuam como antes.
Cassavetes explora bem a questão do racismo, mas está mais interessado na vida das personagens. O que mais lhe interessa é o modo como os percursos físicos das personagens pelas ruas, passando por bares, cafés, cinemas, museus, apartamentos pequenos e parques, se articulam com os modos como elas se entendem e descrevem.
A irmã mais nova, Lelia – interpretada pela actriz Lelia Goldoni, que morreu em Julho deste ano –, é particularmente cativante. Vemo-la a experimentar e rejeitar os diferentes papéis que a sociedade lhe atribui. Por exemplo, procura-se entre as mulheres nos cartazes dos cinemas, mas não se encontra. É uma personagem feminina completamente livre, que pensa pela própria cabeça e testa as ideias na realidade, apesar dos constrangimentos que querem impor-lhe e das coisas que lhe dizem que deve sentir. (Diga-se de passagem, aliás, que Cassavetes, ao contrário de vários realizadores importantes da geração seguinte, como Scorsese, Spielberg ou Coppola, sabia filmar mulheres.)
Lelia, como as outras personagens de Sombras, não tem uma identidade fixa. (Não só não é bem branca como, a dada altura, a acusam de ter um comportamento masculino.) Neste filme, a identidade das personagens é dinâmica e depende das interacções que têm com as outras e com os espaços. Muitos planos de Sombras têm rostos sobrepostos, corpos em movimento, pessoas muito próximas umas das outras em espaços minúsculos, trocas de palavras, discussões, toques, reconciliações. As personagens correm, perseguem-se, fogem, dançam e caem. Por isso, será que as Sombras do título também podem ser associadas às simples silhuetas do teatro de sombras, em que se conta histórias a partir das imagens e movimentos criados por estes bonecos?
Para terminar, quero destacar uma sequência muito bonita em que, num museu ao ar livre, as personagens partilham o espaço com várias esculturas, sendo ao mesmo tempo parecidas com elas, mas muito diferentes delas. Aproveito esta sequência para recordar o escritor Italo Calvino, de quem no dia 15 de Outubro se comemorou o centenário do nascimento. No livro Seis Propostas para o Próximo Milénio (trad. José Colaço Barreiros), Calvino lembra que, se não queremos petrificar (se não queremos transformar-nos nas esculturas ou nas imagens dos cartazes de cinema que vemos neste filme), temos de resistir ao peso, à inércia e à opacidade do mundo – porque há alturas em que só percebemos a complexidade das coisas se as dissolvermos nos seus elementos mais essenciais. É isso que Cassavetes faz, mostrando que muitos elementos que nos pareciam imprescindíveis no cinema afinal podem ser dispensáveis.
15 de outubro de 2023
Golpe de Sorte
8 de outubro de 2023
Hannah e as Suas Irmãs
Como se tem falado muito de Woody Allen a propósito da sua vinda a Portugal e da estreia de Golpe de Sorte, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu rever Hannah e as Suas Irmãs (1986). É possível que a reacção de cada um a este filme dependa da idade com que o vemos. Muito jovens, rimo-nos com alguma crueldade das irresponsabilidades de personagens que nos parecem ter idade para terem juízo. Quando somos mais velhos do que as personagens, já não achamos tanta piada – continuamos a rir-nos, mas é por empatia e identificação. Em Hannah e as Suas Irmãs, as emoções, a energia e a paixão das personagens fazem explodir a narrativa em episódios e vinhetas. No cinema de Woody Allen, a banda sonora desempenha um papel bem mais importante do que parece. Em muitos dos seus filmes, a narrativa desenvolve-se aos soluços, pelas ruas da cidade ou no interior das casas, entre livrarias e a ópera. As personagens fazem escolhas irracionais, cometem erros, têm emoções que não conseguem controlar, traem-se umas às outras, voltam atrás, ou dão um salto inesperado para a frente. O jazz e a música clássica da banda sonora parecem, no entanto, vir de um tempo em que as coisas talvez não fossem tão complicadas. Há um contraste interessante entre as emoções e o desassossego das personagens, por um lado, e a possibilidade de satisfação e calma que só na música parece alcançável. Hannah e as Suas Irmãs acompanha dois anos na vida da família disfuncional das três irmãs referidas no título, filhas de um casal de actores (interpretados por Maureen O’Sullivan, mãe de Mia Farrow também «na vida real», e Lloyd Nolan) com um historial de infidelidades e abuso de álcool. Hannah (Mia Farrow) parece o eixo mais sólido da família, distinguindo-se das suas duas irmãs, mais instáveis e com carreiras e percursos menos definidos: Holly (Dianne Wiest), toxicodependente em recuperação, eterna aspirante a actriz e possível escritora; e a intensa Lee (Barbara Hershey), numa ligação aparentemente sem saída com um artista mais velho que se leva demasiado a sério (Max von Sydow). Ao longo do filme, contudo, vamos percebendo que nenhuma destas personagens está tão mal ou tão bem na vida como parece: a existência aparentemente perfeita de Hannah tem falhas, entre as quais um marido – Elliot/Michael Caine – que se sente atraído por Lee; as suas irmãs, por outro lado, são capazes de encontrar sozinhas soluções para os seus próprios problemas. Em torno desta família gravita também a personagem de Mickey (interpretada pelo próprio Woody Allen), ex-marido de Hannah e argumentista neurótico e hipocondríaco, constantemente à procura do sentido da vida. As suas preocupações com a possibilidade de morrer funcionam como um comentário irónico à agitação sentimental e profissional das outras personagens. A linha narrativa protagonizada por Mickey, apesar de parecer desligada do resto do argumento, acaba por se reintegrar no enredo principal de forma coerente no final do filme, recuperando uma ligação a uma das irmãs, em mais uma troca de casais. No seu livro de memórias, Mia Farrow relata que comentou com Allen que tinha achado que o guião era palavroso «mas não dizia nada», e que as personagens lhe pareciam auto-indulgentes, dissolutas e previsíveis. Uma das grandes qualidades de Woody Allen é precisamente a capacidade de fazer grandes filmes a partir desta matéria-prima de base. Dentro da sua filmografia, num tom tchekhoviano próximo, Setembro (1987), talvez por prestar a mesma atenção à vida familiar e ao interior de uma casa, é uma espécie de reverso sombrio e mais contido de Hannah e as Suas Irmãs. Maureen O’Sullivan ter-se-ia confessado surpreendida («chocada») pelas coincidências entre as relações das personagens de Hannah e as Suas Irmãs e as das pessoas próximas de Mia Farrow, mas o que é a ficção senão a realidade trabalhada?
Outros filmes de Woody Allen no Cinéfilo Preguiçoso: Broadway Danny Rose (1984); Setembro (1987); Irrational Man (2015); Café Society (2016); Roda Gigante (2017); Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2019); Rifkin’s Festival (2020).