28 de janeiro de 2024
Dias Perfeitos | Sobre L'Adamant
21 de janeiro de 2024
Fechar os Olhos
O Sol do Marmeleiro – a longa-metragem anterior de Víctor Erice – estreou em 1992. Quando vemos Fechar os Olhos (2023), o seu filme mais recente, são tantos os ecos da vida e do cinema que pressentimos, que ficamos com a impressão de que Erice, mesmo sem dar por isso, passou trinta anos a imaginá-lo. Isto acontece por haver alguns paralelos entre a história de Erice e a dos dois protagonistas (um realizador e um actor que, nas entrevistas e usando cinematograficamente a figura de Jano, ele descreve como duas faces da mesma identidade ou personagem), mas também pelo facto de Fechar os Olhos permitir uma reflexão sobre a natureza da memória e o modo como a memória da nossa vida se confunde, ou em alguns pontos coincide, com a memória do cinema. Há uma sequência em particular – aquela em que realizador e actor se juntam para caiar um moinho e são filmados entre lençóis a secar – em que nos interrogamos se Erice cita deliberadamente a sequência de A Estrada (Federico Fellini, 1954) em que Zampanò (Anthony Quinn) recorda Gelsomina (Giulietta Masina) quando ouve uma rapariga que põe lençóis a secar enquanto entoa uma canção que Gelsomina costumava cantar. Perante esta sequência no filme de Fellini, pensamos que o que resta das pessoas são coisas levadas pelo vento, que, mesmo assim, conseguem chegar até nós; imagens mal entrevistas no vazio, tapadas por aquilo que afinal nos permite vislumbrá-las. De modo semelhante, em Fechar os Olhos, a memória é figurada por: os tangos assobiados e os gestos que o corpo de um actor que perdeu a memória consegue, apesar de tudo, convocar (nós de marinheiro, a habilidade para consertar); uma dedicatória num livro perdido, mas reencontrado por acaso; uma fotografia que o actor pensa que é da sua vida, mas afinal é do filme de que fugiu; um armazém em que estão guardados as bobinas, os adereços e outro material desse filme inacabado e onde, a dada altura, o protagonista fica sem luz e tem de usar uma lanterna para ver, como às vezes acontece nas salas de cinema, quando os espectadores chegam atrasados. Para Erice, a memória também é quem não conseguimos continuar a ser, o que esquecemos, o que perdemos, os fragmentos que conservamos, mesmo não os compreendendo, como os objectos pessoais da caixa do actor, sem sentido para ele próprio. De acordo com Erice, talvez a memória do cinema seja mais forte do que a da vida. A filha do actor não reconhece o pai, mas a filha da sua personagem reconhece-o no filme inacabado dentro do filme. O realizador decide projectar este filme inacabado para ajudar o actor a recuperar a memória. No fim, durante essa sessão que reúne todas as personagens importantes num velho cinema, acontecem duas coisas notáveis: os actores, no ecrã, olham para a câmara, como que para dizer que o cinema já fez o seu papel e que cabe às pessoas fazerem o que têm a fazer na vida real; e o actor amnésico, sentado na sala, fecha os olhos. Já não precisa de ver o filme? Recuperou a memória? Talvez o cinema seja composto por recordações que nem sempre sabemos que temos. Ficam dentro de nós e, muitas vezes sem darmos por isso, exprimimo-las nos nossos gestos e no ritmo da nossa vida – como Erice pode ter feito, voluntária ou involuntariamente, na sequência com os lençóis e o moinho caiado, ambos tão parecidos com ecrãs de cinema.
Ler também: La morte rouge | Paris – Madrid: Idas e Voltas (Víctor Erice, 2006; Alain Bergala, 2010).
14 de janeiro de 2024
Folhas Caídas
7 de janeiro de 2024
A Virgem de Agosto
Para começar bem o ano de 2024, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver um filme de um realizador que descobriu com prazer em 2023: A Virgem de Agosto (Jonás Trueba, 2019, disponível em DVD). Logo no início, encontramos a protagonista em conversa com um amigo que lhe vai emprestar um apartamento no centro de Madrid durante o mês de Agosto. A propósito da força das personagens femininas nos filmes das décadas de 1930 e 1940, o proprietário da casa refere o livro Buscas da Felicidade, de Stanley Cavell. No cinema de Trueba, as referências literárias não costumam ser indicações de sentido (em geral, são apenas elementos normais das conversas entre as personagens). Neste filme, no entanto, Trueba presta realmente mais atenção à perspectiva feminina: temos uma mulher chamada Eva como protagonista e Trueba escreveu o guião em parceria com a actriz principal, Itsaso Arana. Talvez seja o filme mais rohmeriano que o Cinéfilo Preguiçoso já viu deste realizador – tanto Têm de Vir Vê-la (2022) como Os Exilados Românticos (2015) se distinguem por uma identidade autoral mais forte. Na deriva pela cidade, na estranheza e irracionalidade das suas esperanças, nos encontros e coincidências em que se vê envolvida, e também no desfecho inesperado, Eva recorda inevitavelmente as protagonistas de O Raio Verde (1986) e Conto de Inverno (1992), embora fale e chore muito menos do que elas e explique muito menos quem é. Sobre Eva, só ficaremos a saber que tem 33 anos, foi actriz, mas quer deixar de o ser, e teve uma relação problemática com alguém que terminou há pouco tempo. Outro elemento rohmeriano é o Verão e a diferença de ritmo e energia que nessa época se instala nas cidades. Ao contrário de Delphine, em O Raio Verde, Eva fica na cidade durante o Verão; para ambas, no entanto, o Verão é um período de transformação. A porta de entrada do prédio em que a protagonista se instala temporariamente tem uma fechadura caprichosa, que dá origem a dois dos seus encontros mais importantes – uma vizinha que é artista, e uma velha amiga de quem se tinha distanciado, ambas com preocupações relacionadas com a maternidade. Os percursos diurnos e nocturnos das personagens passam por um museu, um cinema, esplanadas, bares ao ar livre, festas religiosas e uma praia fluvial. No final do filme, na sequência de mais um encontro fortuito, Eva anuncia que está grávida. Este acontecimento é o culminar do seu percurso de autodescoberta ou uma nota de rodapé? A Virgem de Agosto é um filme singularmente escasso em respostas mas que, como é habitual em Trueba, nos mostra o fluxo da vida com uma precisão e uma intensidade invulgares.