O
panorama de filmes em exibição nas salas é de tal forma rico e variado que o
Cinéfilo Preguiçoso optou, mais uma vez, por ficar no conforto do lar, recorrendo
à sua colecção crescente de DVDs. Broadway
Danny Rose (1984), a longa-metragem que Woody Allen realizou imediatamente
após Zelig (1983), partilha com esta os
actores principais (Mia Farrow e o próprio Woody), assim como a esplêndida
fotografia a preto e branco de Gordon Willis. Danny Rose é um agente cujo
portefólio inclui artistas menores e bizarros, que dispensam invariavelmente os
seus serviços quando (e se) alcançam algum sucesso. A história de Rose, e em
particular o seu envolvimento com o crooner
Lou Canova (representado por Nick Apollo Forte, que, incrivelmente, não
participou em nenhum outro filme nem antes nem depois deste), é contada numa
roda de amigos – um esquema que Woody voltaria a empregar, vinte anos mais
tarde, em Melinda and Melinda (2004).
O ambiente é urbano (Nova Iorque, claro está) e povoado por uma fauna de
comediantes, empresários, artistas e proprietários de salas de espectáculos. Quase
todas as personagens assumem contornos físicos bastante fellinianos. Este meio,
que Woody conhece intimamente, serve de cenário a uma história simples e
humana, com doses moderadas de burlesco e sentimentalismo. O final é discreto:
há um travelling e há uma
reconciliação, mas filmados com um distanciamento e uma ausência de pathos que prenunciam o último plano, que
ecoa aquele que encerra Annie Hall
(1977). O tráfego anónimo que substitui a presença humana sugere pudicamente
que qualquer final feliz seria um falso final, provisório e vulnerável ao
tempo.
24 de janeiro de 2016
18 de janeiro de 2016
Hannah Arendt
A
característica mais invulgar do filme Hannah
Arendt, de Margarethe von Trotta
(2012), é ter como protagonista uma filósofa. Não é todos os dias que se
realizam filmes com temáticas relacionadas com a filosofia. Além disso, é
difícil encontrar mulheres que recebam atenção na História desta actividade.
Como
filmar o pensamento, algo supostamente interior? Em Hannah Arendt, encontramos pelo menos três maneiras de resolver
esta dificuldade.
Primeiro,
o eixo central representa e explora um ataque ao pensamento. Este filme gira em
torno de um episódio específico – o julgamento do nazi Adolf Eichmann que
decorreu em Israel entre 1961 e 1962 –, abordado nos artigos polémicos que a
filósofa escreveu sobre este assunto para a revista New Yorker. Nestes textos, Arendt (interpretada por Barbara Sukowa)
descreveu o nazismo como um atentado à própria actividade de pensar. Visto que,
de acordo com Arendt, pensar implica o “eu” num “nós” maior, que corresponde à
humanidade, qualquer tipo de genocídio só pode derivar da incapacidade de
pensar ou de um fracasso do pensamento.
A segunda
maneira como este filme mostra o pensamento é explorando as reacções que a
actividade de pensar, quando é verdadeiramente independente, pode desencadear (discussões,
incompreensões, inimizades, ataques, cartas de protesto, ameaças, etc.) de
ambas as partes em questão.
Por último, mas tão ou mais
importante, o filme não ignora uma terceira dimensão do processo de pensar, mais individual, intimista e difícil de captar, através da qual testemunhamos o quotidiano de Hannah
Arendt, a dar aulas, a cozinhar, em conversa com o marido, com a amiga Mary
McCarthy ou com a assistente, mas também sozinha, a reflectir, debatendo-se com
a dificuldade de escrever, deitada num sofá, a fumar, olhando pela janela ou
caminhando. Não é por acaso que Hannah
Arendt termina precisamente com um plano na penumbra da protagonista estendida num sofá, em silêncio, simplesmente a fumar e a pensar.
10 de janeiro de 2016
45 Anos
45 Anos (2015), terceira longa-metragem do
realizador inglês Andrew Haigh, não impressiona pela originalidade do tema (uma
crise conjugal desencadeada pela revelação de um segredo antigo) nem por
ousadias formais de qualquer espécie. É um filme de diálogos e de hiatos,
tantas vezes pesados de tensão e ressentimento, entre os diálogos. É um filme
de ambientes e de atmosferas, em que as paisagens do Leste de Inglaterra e a
meteorologia quase chegam a merecer o estatuto de personagens de pleno direito.
E é, acima de tudo, um filme de tempos mortos esparsamente preenchidos pelos
gestos da rotina (fazer chá, consertar o autoclismo), sem outra função a não
ser a de servir de terreno para a consolidação das dúvidas, desconfianças e
receios dos dois protagonistas, Kate e Geoff, um casal reformado, socialmente
activo e sem filhos. O filme desenrola-se ao longo de uma semana e culmina com
uma festa destinada a celebrar os 45 anos do casamento de Kate e Geoff. O
desenlace, que o realizador provavelmente pretendeu que fosse uma mistura
poderosa de ambiguidade e intensidade dramática, não é nem intenso nem ambíguo.
Ainda assim, seria ridículo deixar de enaltecer Charlotte Rampling, que sabe
compensar a falta de interesse da personagem com a presença da actriz: é a
actriz que sobressai em relevo, com uma profundidade e uma riqueza alicerçadas
na sua carreira; é ela quem, em suma, assume o controlo. Nada disto subtrai
valor ao desempenho, também digno de elogios, do veterano Tom Courtenay, mas as
coisas são como são. 45 Anos
baseia-se num conto do tradutor, poeta, contista e romancista inglês David
Constantine. Rampling e Courtenay receberam os prémios de interpretação do Festival
de Berlim.
4 de janeiro de 2016
Heart of a Dog
Ver este
filme não é muito diferente de assistir a um concerto de Laurie Anderson.
Habitualmente, nestes concertos são mais importantes as histórias que a artista
conta do que a música que se ouve. Contudo, enquanto os concertos da artista
não se organizam necessariamente em torno de um tema unificador, em Heart of a Dog (2015) conseguimos facilmente
identificar o eixo central das histórias: o tópico da morte. Este suscita desde reflexões mais gerais,
relacionadas, por exemplo, com a ameaça terrorista, a pensamentos e narrações
mais particulares do desaparecimento de entes queridos. À superfície, a morte mais
comentada em Heart of a Dog é a de
Lollabelle, a cadela rat terrier da
artista. Logo no início do filme, o estranho sonho em que a artista dá à luz
Lolabelle clarifica de imediato o estatuto da relação entre a artista e a
cadela. É curioso, no entanto, que num filme sobre a morte a artista nunca se
refira ao desaparecimento do marido, Lou Reed, em 2013. Antes do genérico final
aparece uma fotografia dele, mas Laurie Anderson nunca refere directamente a
morte do músico. Por esse motivo, ficamos com a sensação de que o mais
importante deste filme não pôde ser dito. As reflexões sobre a morte de
Lolabelle e de pessoas próximas podem ser vistas como um estratagema para
começar a abordar indirectamente a morte mais importante, aquela que ainda não se
consegue transformar em arte. Circular em torno da ausência e do não-verbalizado
é a estratégia principal de que a construção deste filme depende. A dada
altura, Laurie Anderson comenta: «Até agora, na minha vida, vi três fantasmas.
Um deles foi o de Gordon Matta-Clark.» Ficamos a pensar em quem terão sido os outros dois.
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