24 de janeiro de 2016

Broadway Danny Rose



O panorama de filmes em exibição nas salas é de tal forma rico e variado que o Cinéfilo Preguiçoso optou, mais uma vez, por ficar no conforto do lar, recorrendo à sua colecção crescente de DVDs. Broadway Danny Rose (1984), a longa-metragem que Woody Allen realizou imediatamente após Zelig (1983), partilha com esta os actores principais (Mia Farrow e o próprio Woody), assim como a esplêndida fotografia a preto e branco de Gordon Willis. Danny Rose é um agente cujo portefólio inclui artistas menores e bizarros, que dispensam invariavelmente os seus serviços quando (e se) alcançam algum sucesso. A história de Rose, e em particular o seu envolvimento com o crooner Lou Canova (representado por Nick Apollo Forte, que, incrivelmente, não participou em nenhum outro filme nem antes nem depois deste), é contada numa roda de amigos – um esquema que Woody voltaria a empregar, vinte anos mais tarde, em Melinda and Melinda (2004). O ambiente é urbano (Nova Iorque, claro está) e povoado por uma fauna de comediantes, empresários, artistas e proprietários de salas de espectáculos. Quase todas as personagens assumem contornos físicos bastante fellinianos. Este meio, que Woody conhece intimamente, serve de cenário a uma história simples e humana, com doses moderadas de burlesco e sentimentalismo. O final é discreto: há um travelling e há uma reconciliação, mas filmados com um distanciamento e uma ausência de pathos que prenunciam o último plano, que ecoa aquele que encerra Annie Hall (1977). O tráfego anónimo que substitui a presença humana sugere pudicamente que qualquer final feliz seria um falso final, provisório e vulnerável ao tempo.

18 de janeiro de 2016

Hannah Arendt




A característica mais invulgar do filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta (2012), é ter como protagonista uma filósofa. Não é todos os dias que se realizam filmes com temáticas relacionadas com a filosofia. Além disso, é difícil encontrar mulheres que recebam atenção na História desta actividade.
Como filmar o pensamento, algo supostamente interior? Em Hannah Arendt, encontramos pelo menos três maneiras de resolver esta dificuldade.
Primeiro, o eixo central representa e explora um ataque ao pensamento. Este filme gira em torno de um episódio específico – o julgamento do nazi Adolf Eichmann que decorreu em Israel entre 1961 e 1962 –, abordado nos artigos polémicos que a filósofa escreveu sobre este assunto para a revista New Yorker. Nestes textos, Arendt (interpretada por Barbara Sukowa) descreveu o nazismo como um atentado à própria actividade de pensar. Visto que, de acordo com Arendt, pensar implica o “eu” num “nós” maior, que corresponde à humanidade, qualquer tipo de genocídio só pode derivar da incapacidade de pensar ou de um fracasso do pensamento.
A segunda maneira como este filme mostra o pensamento é explorando as reacções que a actividade de pensar, quando é verdadeiramente independente, pode desencadear (discussões, incompreensões, inimizades, ataques, cartas de protesto, ameaças, etc.) de ambas as partes em questão.
Por último, mas tão ou mais importante, o filme não ignora uma terceira dimensão do processo de pensar, mais individual, intimista e difícil de captar, através da qual testemunhamos o quotidiano de Hannah Arendt, a dar aulas, a cozinhar, em conversa com o marido, com a amiga Mary McCarthy ou com a assistente, mas também sozinha, a reflectir, debatendo-se com a dificuldade de escrever, deitada num sofá, a fumar, olhando pela janela ou caminhando. Não é por acaso que Hannah Arendt termina precisamente com um plano na penumbra da protagonista estendida num sofá, em silêncio, simplesmente a fumar e a pensar.

10 de janeiro de 2016

45 Anos




45 Anos (2015), terceira longa-metragem do realizador inglês Andrew Haigh, não impressiona pela originalidade do tema (uma crise conjugal desencadeada pela revelação de um segredo antigo) nem por ousadias formais de qualquer espécie. É um filme de diálogos e de hiatos, tantas vezes pesados de tensão e ressentimento, entre os diálogos. É um filme de ambientes e de atmosferas, em que as paisagens do Leste de Inglaterra e a meteorologia quase chegam a merecer o estatuto de personagens de pleno direito. E é, acima de tudo, um filme de tempos mortos esparsamente preenchidos pelos gestos da rotina (fazer chá, consertar o autoclismo), sem outra função a não ser a de servir de terreno para a consolidação das dúvidas, desconfianças e receios dos dois protagonistas, Kate e Geoff, um casal reformado, socialmente activo e sem filhos. O filme desenrola-se ao longo de uma semana e culmina com uma festa destinada a celebrar os 45 anos do casamento de Kate e Geoff. O desenlace, que o realizador provavelmente pretendeu que fosse uma mistura poderosa de ambiguidade e intensidade dramática, não é nem intenso nem ambíguo. Ainda assim, seria ridículo deixar de enaltecer Charlotte Rampling, que sabe compensar a falta de interesse da personagem com a presença da actriz: é a actriz que sobressai em relevo, com uma profundidade e uma riqueza alicerçadas na sua carreira; é ela quem, em suma, assume o controlo. Nada disto subtrai valor ao desempenho, também digno de elogios, do veterano Tom Courtenay, mas as coisas são como são. 45 Anos baseia-se num conto do tradutor, poeta, contista e romancista inglês David Constantine. Rampling e Courtenay receberam os prémios de interpretação do Festival de Berlim.

4 de janeiro de 2016

Heart of a Dog

 
 
 

Ver este filme não é muito diferente de assistir a um concerto de Laurie Anderson. Habitualmente, nestes concertos são mais importantes as histórias que a artista conta do que a música que se ouve. Contudo, enquanto os concertos da artista não se organizam necessariamente em torno de um tema unificador, em Heart of a Dog (2015) conseguimos facilmente identificar o eixo central das histórias: o tópico da morte.  Este suscita desde reflexões mais gerais, relacionadas, por exemplo, com a ameaça terrorista, a pensamentos e narrações mais particulares do desaparecimento de entes queridos. À superfície, a morte mais comentada em Heart of a Dog é a de Lollabelle, a cadela rat terrier da artista. Logo no início do filme, o estranho sonho em que a artista dá à luz Lolabelle clarifica de imediato o estatuto da relação entre a artista e a cadela. É curioso, no entanto, que num filme sobre a morte a artista nunca se refira ao desaparecimento do marido, Lou Reed, em 2013. Antes do genérico final aparece uma fotografia dele, mas Laurie Anderson nunca refere directamente a morte do músico. Por esse motivo, ficamos com a sensação de que o mais importante deste filme não pôde ser dito. As reflexões sobre a morte de Lolabelle e de pessoas próximas podem ser vistas como um estratagema para começar a abordar indirectamente a morte mais importante, aquela que ainda não se consegue transformar em arte. Circular em torno da ausência e do não-verbalizado é a estratégia principal de que a construção deste filme depende. A dada altura, Laurie Anderson comenta: «Até agora, na minha vida, vi três fantasmas. Um deles foi o de Gordon Matta-Clark.» Ficamos a pensar em quem terão sido os outros dois.