25 de junho de 2023

Asteroid City

O Cinéfilo Preguiçoso já teve ocasião de mencionar alguns aspectos que tornam o estilo de Wes Anderson tão peculiar: minúcia quase maníaca na composição dos planos; interesse por famílias vagamente disfuncionais e por crianças ou adolescentes sobredotados; humor próximo da lógica do cartoon; estilo de representação neutro e isento de emoções. Asteroid City (2023), o novo filme deste realizador, integra todos estes elementos. Tal como em Crónicas de França (2021), existe uma metanarrativa que ajuda a estruturar o filme. O espectador está entregue a um mestre de cerimónias, que se propõe mostrar um programa de televisão sobre a produção de uma peça intitulada Asteroid City. No entanto, o que o espectador vê parece ser uma versão para cinema dessa peça fictícia, intercalada por histórias dos bastidores, incluindo os conflitos entre actores e o encenador. A acção centra-se numa minúscula povoação no meio do deserto, povoada de fragmentos do imaginário americano dos anos 50 (drugstore, motel, estação de serviço), onde vai ter lugar uma cerimónia de entrega de prémios a jovens cientistas. O aparecimento de uma nave alienígena determina uma quarentena forçada e faz com que as famílias dos jovens, e outros visitantes, se vejam obrigados a conviver em proximidade forçada. O filme resulta graças ao ritmo, que nunca claudica (ao contrário do que sucedia em Crónicas de França), à excelência dos actores (muitos dos quais, como Jason Schwartzman e Adrien Brody, são cúmplices de longa data de Anderson), à tensão muito bem gerida entre a versão filmada da história e a peça que lhe teria dado origem e, acima de tudo, à capacidade que o realizador possui de controlar todos os pormenores do filme sem o tornar monotonamente sufocante, nem demasiado cerebral. Os filmes de Anderson parecem abdicar da intenção de transmitir verdades profundas sobre a humanidade. Contudo, apesar da artificialidade aparente e de um registo que pode parecer puramente lúdico, não são isentos de pathos: o tema do luto, já presente em The Darjeeling Limited (2007), é aqui explorado de forma subtil, mas tocante – e é notável como os actores conseguem transmitir a riqueza interior das suas personagens apesar da aparente falta de expressividade. Wes Anderson, para desconsolo dos detractores e delícia dos admiradores, desenvolveu um estilo muito próprio que tem vindo a depurar e a levar para terrenos bastante alheios a quase tudo o que actualmente se faz no cinema norte-americano. Que o tenha feito continuando a criar filmes engenhosos e cómicos que convidam o espectador a partilhar o seu universo, em vez de o alienar, é francamente meritório.
 
Outros filmes de Wes Anderson no Cinéfilo Preguiçoso: The Royal Tenenbaums (2001), Crónicas de França (2021).

18 de junho de 2023

Caught

Esta semana, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver mais um filme da fase americana de Max Ophüls. Protagonizado por Barbara Bel Geddes, James Mason e Robert Ryan, Caught (1949), que está disponível no YouTube, é uma adaptação do romance Wild Calendar, de Libbie Block, e conta uma espécie de conto de fadas invertido, em que a protagonista faz o casamento rico com que sonhava, mas percebe que não é feliz se tiver de viver fechada num palácio. Embora apresente algumas marcas estilísticas do cinema de Ophüls, como longos travellings, a obsessão com escadas, e a exploração dos contrastes entre a luz e as sombras, ou o luxo e a pobreza, talvez não seja o filme mais característico do realizador. Em Caught, a protagonista tenta libertar-se da inevitabilidade irracional que costuma reinar nos filmes de Ophüls. Para esse fim, é essencial a atitude prática e sensata de uma actriz como Barbara Bel Geddes, que conhecemos bem de Vertigo (Hitchcock, 1958) e da série Dallas. Robert Ryan costuma ser muito elogiado enquanto «actor do Método», sendo por vezes comparado a Marlon Brando, mas aqui interpreta com grande rigidez e excesso de tiques o papel de milionário instável (supostamente inspirado por Howard Hughes, que Ophüls detestava). Já James Mason, apesar de ter aceitado o papel de jovem médico idealista por ser diferente das personagens manipuladoras que costumavam atribuir-lhe, enriquece a personagem com alguma ambiguidade, fazendo-a parecer menos totalmente boazinha e até mais manipuladora do que originalmente seria. Se, em The Reckless Moment (1949), realizado logo a seguir, James Mason interpreta um mau que afinal é bom, em Caught interpreta um bom que nos faz suspeitar de que pode vir a ser mau. Numa época em que não se reflectia tão exaustivamente sobre o tema da masculinidade tóxica, o filme explora esta questão de modo interessante, em articulação com um certo imaginário feminino (associado à preocupação de ser uma princesa, num casamento com um homem rico) de que a masculinidade tóxica se alimenta de forma indissociável. Caught pode ser visto como a descrição de uma aprendizagem de vida: a personagem principal é obrigada a lidar com o mundo real e com os seus dilemas, muito mais complexos do que aqueles para os quais a escola de boas maneiras a preparou. A aprendizagem não fica concluída, porque, no final do filme, embora a protagonista se tenha libertado da armadilha do casamento infeliz com um milionário, ainda não descobriu realmente o que pretende da vida. A contrário dos contos de fadas tradicionais, o desfecho é ambíguo e só com muito boa vontade pode ser considerado “feliz”.

Outros filmes de Max Ophüls no Cinéfilo Preguiçoso: Divine (1935); Yoshiwara (1937); Sans Lendemain (1939); Carta de Uma Desconhecida (1948); The Reckless Moment (1949); La Ronde (1950); Le Plaisir (1952).

11 de junho de 2023

The Reckless Moment

Integrado no ciclo dedicado à actriz Joan Bennett que decorre na Cinemateca, The Reckless Moment (1949) foi o último filme realizado por Max Ophüls na América. Lucia Harper, a personagem principal, é uma mãe de família californiana que, na ausência prolongada do marido, tem de gerir a casa onde vive com os filhos e o sogro. A vida burguesa desta família é abalada pelo envolvimento romântico da filha adolescente com um homem mais velho de moral duvidosa, que sofre uma morte acidental depois de uma discussão com ela. Lucia passa o resto do filme a tentar proteger a filha das consequências deste evento, o que implica tentar ocultar o cadáver e lidar com um chantagista (James Mason), por quem acaba por se apaixonar. Como se pode ver por este resumo, o argumento, baseado num romance de Elisabeth Sanxay Holding, não prima pela verosimilhança. Nem parece que isso tenha sido um problema para Ophüls, que está mais interessado em explorar as potencialidades desta situação estranha (uma mulher normal obrigada a conjugar os deveres domésticos com a dissimulação de um crime) do que em tornar credíveis as motivações das personagens. The Reckless Moment é mais uma prova da extraordinária capacidade deste realizador de manter o seu toque pessoal ao longo de uma carreira que, não tendo sido muito longa devido à sua morte prematura, se estendeu por cinco países e foi rica em peripécias e contratempos. O filme permite-lhe explorar um dos seus temas de predilecção: uma personagem feminina com acções guiadas exclusivamente pela intenção de preservar um segredo, por orgulho ou necessidade, o que a leva a parecer uma sonâmbula que age maquinalmente, num mundo completamente alheio àquilo que ela sente e sabe. Neste sentido, Lucia está próxima das personagens de Edwige Feuillère em Sans Lendemain (1939) e de Joan Fontaine em Carta de Uma Desconhecida (1948). Ophüls é conhecido pela maneira magistral como explora os espaços interiores; numa das folhas da Cinemateca, João Bénard da Costa fala das escadas como uma das principais figuras de retórica deste realizador. Isso é muito visível em The Reckless Moment: os diferentes níveis e divisões da casa de família são explorados de modo a realçar o contraste entre o enredo de film noir e o ambiente de sitcom familiar, pontuado por pequenas discussões domésticas e preparativos das refeições. Este contraste faz com que a casa quase pareça mais sinistra do que outros ambientes mais directamente associados à sordidez do crime e da chantagem, como o pântano onde Lucia submerge o cadáver, ou a casa do lago onde decorrem os encontros com aqueles que tentam extorquir-lhe dinheiro em troca das cartas que a filha escreveu ao amante morto. Há muito para ver e haveria muito para dizer ainda sobre The Reckless Moment, mas fiquemo-nos por isto: o Cinéfilo Preguiçoso saiu da sala perplexo com o facto de este ter sido considerado um Ophüls “menor”. É certo que se pode argumentar que o filme não nos leva aos patamares estratosféricos de, por exemplo, Le Plaisir (1952), mas quem dera a muitos realizadores, alguns deles adulados como génios, que o melhor dos seus filmes fosse comparável ao menos bom de Ophüls.
 
Outros filmes de Max Ophüls no Cinéfilo Preguiçoso: Divine (1935); Yoshiwara (1937); Sans Lendemain (1939); Carta de Uma Desconhecida (1948); La Ronde (1950); Le Plaisir (1952).
 

4 de junho de 2023

Caprice | The Staggering Girl

Esta semana, o Cinéfilo Preguiçoso viu no Mubi duas curtas-metragens de realizadores que acha interessantes: Caprice (Joanna Hogg, 1986) e The Staggering Girl (Luca Guadagnino, 2019). Inesperadamente, estas duas curtas têm pontos em comum, relacionados com as preocupações dos seus realizadores com a moda e o estilo, além de, por coincidência, ambas incluírem sequências de dança com modelos vestidas com diferentes cores. Caprice foi o filme que Joanna Hogg realizou para terminar o curso na escola de cinema e era a sua única curta-metragem até Présages, realizada em 2023. Acompanha uma rapariga que, como uma espécie de Alice no País das Maravilhas ou heroína dos filmes de Powell e Pressburger (The Red Shoes, 1948, entre outros musicais, é uma grande influência aqui), entra subitamente nas páginas de uma revista feminina que costuma ler e percorre as secções de moda, perfumes, maquilhagem, música, eventos sociais, romance, para acabar por se desinteressar deste tipo de leitura. Os fãs de Hogg têm a surpresa de encontrar nesta sua primeira obra vários elementos que anunciam o futuro da realizadora. No papel principal, reconhecemos uma jovem Tilda Swinton em início de carreira, actriz que terá uma presença importante na obra posterior de Joanna Hogg. Além disso, de certa forma, o percurso da protagonista corresponde ao da própria realizadora: depois da escola de cinema, Hogg passou cerca de duas décadas a trabalhar em televisão, videoclips e publicidade (estéticas próximas das que são exploradas nesta curta), até se desinteressar destes universos e, em 2007, realizar o excelente Unrelated, filme independente e original em vários sentidos. Igualmente fascinante é o facto de, em The Souvenir Part II (2021), em que Julie também usa uma espécie de sapatos vermelhos mágicos, Joanna Hogg ter incluído uma versão alternativa, ainda mais fantasista e quase surrealista, de Caprice. Quanto a Guadagnino, também The Staggering Girl, na sua fluidez narrativa, tem algumas características cativantes, embora sucumba à obsessão pelo estilo e pela beleza que às vezes torna o cinema deste realizador demasiado superficial. Com banda sonora de Ryuichi Sakamoto e guarda-roupa desenhado por Valentino, esta curta é protagonizada por Francesca/Julianne Moore, no papel de uma escritora nova-iorquina em crise que é invadida por recordações quando tem de ir a Itália buscar a mãe, uma pintora famosa que está a perder a vista. Logo no início, curiosamente, há uma referência ao filme Another Woman (Woody Allen, 1988), quando Francesca entreouve uma sessão de psicanálise de uma desconhecida através da grelha de ventilação do escritório em que tenta escrever. (Aliás, o genérico segue um estilo muito próximo daquele que Allen adoptou quase desde o início da carreira e que manteve até hoje.) Julianne Moore assume também o papel da protagonista na infância, convivendo com a sua jovem mãe. Por sua vez, Kyle MacLachlan desempenha todos os papéis masculinos desta história, representando uma espécie de «eterno masculino». Do ponto de vista visual, The Staggering Girl é um filme bonito, com algumas peculiaridades narrativas (sobretudo o carácter fragmentário, a estrutura em mosaico, e a fusão entre passado, presente e futuro) que, pela sua invulgaridade, fazem com que valha a pena vê-lo. Ainda assim, ao contrário do que se verifica com a protagonista (e alter ego) de Joanna Hogg, não se pode dizer que Guadagnino se liberte satisfatoriamente da estética publicitária. É inevitável estabelecermos uma comparação entre Guadagnino e Almodóvar, pelo facto de também o realizador espanhol demonstrar uma certa obsessão pelo estilo e pela alta-costura, mas nunca deixar que estes se sobreponham à profundidade do enredo e da psicologia. Assinale-se também que Tilda Swinton já desempenhou papéis importantes tanto na obra de Guadagnino e Almodóvar como na de Joanna Hogg, o que mostra que esta actriz se adequa particularmente bem a filmes em que as preocupações com o estilo são relevantes. Mas podemos dizer que, para Guadagnino, o estilo é muitas vezes um fim em si, enquanto para Joanna Hogg é um tema de reflexão estética e para Almodóvar é um instrumento de caracterização das personagens.

Outros filmes de Joanna Hogg no Cinéfilo Preguiçoso: Unrelated (2007); Archipelago (2010); Exhibition (2013); The Souvenir (2019); The Souvenir Part II (2021); The Eternal Daughter (2022).

Outros filmes de Luca Guadagnino: Mergulho Profundo (2015); Chama-me pelo Teu Nome (2017); Suspiria (2018).