Eis que
chega às salas o segundo volume de As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes
(2015). O subtítulo O Desolado anuncia inequivocamente o tom deste filme.
Enquanto o primeiro volume surpreendia pela força vital, pelo humor e pela ironia com que
as personagens lidavam com as suas histórias infelizes e a sua própria revolta
(com soluções que iam desde impingir chocolates da Suíça a quem aparecesse lá
por casa, até ‘votar em todos’, conceber invenções engenhosas para controlar a
expansão das vespas asiáticas, ou tomar o dobro ou o triplo das gotas de
Angelicalm), o segundo volume dá uma espécie de murro no estômago do
espectador. As personagens das três secções deste episódio vão perdendo
lentamente a capacidade de reacção e as que não recorrem a todos os expedientes
para sobreviver acabam por se render e desistir da vida. Na primeira
secção do filme, em que se narra a captura de Simão Sem Tripas, deparamos com a combinação de uma vertente popular/tradicional com outra, tecnológica e contemporânea, numa
história com laivos de lenda, mas vigiada por drones e acompanhada por
escuteiros que aclamam um assassino. Na segunda secção, intitulada As Lágrimas
da Juíza, em que assistimos ao inventário e julgamento de um conjunto de
crimes mesquinhos cometidos ‘ou por maldade ou por desespero’, todos parecem
(parecemos) culpados de pequenos expedientes em relação aos quais não dispõem de grandes
alternativas para escapar. Na terceira secção, a derrota instala-se
definitivamente. Uma referência especial a certos momentos do filme em que a
presença de Sayombhu Mukdeeprom (director de
fotografia habitual do realizador tailandês Apichatpong Weerasethakul) se faz
sentir de modo inegável, como o relato da vaca na segunda secção, o encontro do
cão Dixie com o seu próprio fantasma na terceira secção, ou certos planos
desprovidos de presença humana mas em que fumos, líquidos ou correntes de ar
parecem dar corpo a uma ameaça.
28 de setembro de 2015
21 de setembro de 2015
Irrational Man
O
Cinéfilo Preguiçoso não leva o zelo ao ponto de escolher os destinos turísticos
de acordo com os filmes que quer ver, mas por vezes é bafejado pela sorte. Foi
assim que, neste Verão, não hesitou ao saber que o novo filme de Woody Allen,
Irrational Man (2015), ia ser exibido numa sala de aspecto simpático mas
vagamente antiquado, nas Galerias Reais, bem no centro de Bruxelas, onde foi
recebido por um funcionário de bilheteira entusiasta. Anualmente, a estreia de um novo Woody é
acolhida pelo inevitável cortejo de sentenças e interrogações: estará o filme à
altura das suas obras anteriores? Se é certo que obras-primas como Annie Hall
(1977), Manhattan (1979) ou Hannah and Her Sisters (1986) parecem difíceis
de repetir, a discussão pontual sobre a qualidade de cada filme desvia as
atenções da perspectiva global sobre a obra de Woody Allen. Quarenta e seis
anos depois de Take the Money and Run, a sua filmografia surge como uma
admirável contínuo de temas, obsessões e personagens, movido por um impulso de
cinema onde cabem o profissionalismo e a paixão. (É refrescante o contraste com
realizadores que ficam dez ou quinze anos à espera do sopro da inspiração ou
das condições de produção ideais.) Sobre Irrational Man, que fique dito:
Joaquin Phoenix domina o filme, como sempre; o tema (envolvendo moral, mal-entendidos
filosóficos, uma escolha e um homicídio) remete claramente para Match Point
(2005); é delicioso o pormenor de a personagem de Emma Stone ser salva pelo seu
espírito prático e pela pequena lanterna que escolheu numa tômbola, em vez de
um objecto mais vistoso; não, não é um filme genial, mas a falta de génio de
Woody Allen é muito mais estimulante do que grande parte do cinema hoje em dia.
14 de setembro de 2015
The Day He Arrives
Num dos
numerosos diálogos que se ouvem em The
Day He Arrives, realizado por Hong Sang-Soo (2011), uma personagem
argumenta que as coincidências não possuem qualquer significado além daquele
que lhes é atribuído por quem as vive. O próprio filme parece uma ilustração
desta ideia: sucedem-se os encontros acidentais entre a personagem principal
(um realizador de cinema de visita a Seul, de onde saiu para ir dar aulas para
a província) e amigos, conhecidos ou admiradores. As mesmas situações
repetem-se sem que fique claro se se trata de um artifício formal ou se estas
personagens repetem gestos e frases dia após dia e noite após noite, incapazes
de formar as memórias de curto prazo que lhes permitiriam perceber que se estão
a repetir. A impressão é a de uma cronologia difusa e de um tempo cíclico em
vez de linear; o protagonista parece estar entre duas relações, mas o “antes” e
o “depois” da relação, assim como as próprias personagens femininas envolvidas,
assemelham-se estranhamente. Hong Sang-Soo é um realizador sul-coreano que
começa a ter o destaque que a sua obra, discreta e singular, há muito merecia.
Os seus filmes, formalmente subtis, recorrem quase invariavelmente a uma
matéria-prima ficcional bastante simples: personagens banais, totalmente
incapazes de tomar uma resolução que as ajude a resolver os seus problemas
(geralmente sentimentais). Espera-se que a atenção mediática suplementar devida
à colaboração com uma estrela internacional (Isabelle Huppert, em In Another Country, de 2012) e o recente
Leopardo de Ouro no Festival de Locarno (por Right Now, Wrong Then, de 2015) contribuam para que os seus filmes
sejam vistos mais regularmente em Portugal.
7 de setembro de 2015
Metamorfoses | As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
O
Cinéfilo Preguiçoso não descurou a sua missão durante o período estival.
Metamorfoses (2014) sugere um saudável desejo de ruptura na obra de
Christophe Honoré, depois do marasmo criativo que Os Bem-Amados (2011)
deixava entrever. O filme esgota-se na sua ideia de base: uma transcrição para
o cinema dos mitos de Ovídio, encenados numa França rural mas repleta de sinais
da civilização. Algumas cenas plasticamente conseguidas não dissipam a
impressão de um exercício inofensivo e inconsequente. A ruptura também existe
em As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto (2015), de Miguel Gomes, mas
trata-se neste caso de algo interno ao fluxo do filme: fiel a si mesmo, Gomes
subverte o esquema formal proposto ao espectador no início da obra e
apresenta-nos um produto final que reflecte esse mesmo processo de reinvenção. O
golpe de rins narrativo (a fuga do realizador e colaboradores próximos,
obrigados em seguida a inventar histórias, à maneira de Xerazade, para aplacar
a ira dos restantes membros da equipa), de uma comicidade pueril, é aplicado
logo no início do filme e abre caminho para um mosaico de narrativas e vinhetas
que traçam um retrato de Portugal contemporâneo com eficácia e lirismo: não
faltam as referências ao desemprego, à troika e às eleições locais, mas também
a temas aparentemente mais corriqueiros embora com óbvio interesse local (a
vespa asiática). A impressão que fica, enquanto se espera pelos restantes
volumes da trilogia, é a de liberdade e ousadia ao serviço de uma vontade
urgente de ser fiel àquilo que foi e é o Portugal dos anos de chumbo da crise e
do memorando de entendimento. E há que dizer que o episódio do galo é das
coisas mais hilariantes e ao mesmo tempo mais realistas que o cinema português
nos ofereceu nos últimos anos.
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