26 de junho de 2016

Maggie Tem Um Plano


 
Maggie Tem Um Plano, de Rebecca Miller (2015), possui muitas características entediantes. O facto de se tratar de mais um filme situado em Nova Iorque, sobre personagens que não se cansam de falar sobre as próprias dificuldades e más relações, por si só, não é um problema. Há e continuará a haver bons filmes com estes mesmos tópicos – mas distinguindo-se de Maggie Tem Um Plano por assentarem em diálogos mais inteligentes e em dilemas que suscitam mais curiosidade. Por exemplo, o filme Listen Up Philip (sobre o qual escrevemos recentemente) situa-se na mesma cidade, incluindo personagens equivalentes (escritores, académicos, criativos), mas é muito mais interessante. E, contudo, participam no filme de Rebecca Miller – nascida em 1962, filha do dramaturgo Arthur Miller e casada com Daniel Day Lewis, já nossa conhecida por ter realizado filmes como Velocidade Pessoal (2002) ou A Balada de Jack e Rose (2005) – actores excelentes e carismáticos, desempenhando papéis que poderiam dar pano para mangas: uma protagonista (Greta Gerwig) com uma dimensão maternal controladora que, depois de tentar proteger em enredos consistentes todos os que a cercam, um pouco à semelhança da Emma de Jane Austen, tem de se render ao «destino» ou «acaso»; um casal de académicos da área da «antropologia fictocrítica» (sic) – John (Ethan Hawke) e Georgette (Julianne Moore) – a braços com as dificuldades típicas tanto de um casamento longo como da carreira em questão. Apesar de não serem propriamente medíocres, estas e outras figuras nunca se destacam daquilo a que vulgarmente chamamos «conversa de chacha», ao ponto de – proeza inesperada mas dispensável – não haver qualquer química entre as personagens de Greta Gerwig e Ethan Hawke, pelo simples facto de os diálogos e a maior parte das situações em que estão envolvidos serem tão desengraçados e repisarem tantos lugares-comuns maçadores que chegam a ser exasperantes. Felizmente, em contraste absoluto com Maggie Tem Um Plano no que diz respeito à inteligência dos diálogos, estreou esta semana o filme Academia das Musas,  de José Luis Guerín (visto pelo Cinéfilo Preguiçoso no ano passado).

19 de junho de 2016

L'Avenir


Compreendendo cinco longas-metragens (uma das quais já abordada neste espaço) e um punhado de curtas, a carreira de Mia Hansen-Løve pode inserir-se na tradição naturalista francesa representada por Pialat, Téchiné ou Doillon. Contudo, existem particularidades de estilo que conferem um cunho de individualidade muito forte aos seus filmes e que a distinguem dos seus pares e dos seus antecessores. L’Avenir (2016, traduzido em Portugal por O Que Está por Vir), confirma esta impressão de originalidade e continuidade. O filme segue uma personagem num ponto crítico da sua vida. Professora de filosofia, casada e com dois filhos, Nathalie (Isabelle Huppert) é confrontada, num espaço de tempo curto, com o divórcio, a morte da mãe, o nascimento do neto e a sabotagem dos seus projectos editoriais, demasiado austeros e desalinhados com os ditames do marketing. L’Avenir é a crónica das reacções de Nathalie aos dissabores que sofre, oscilando entre a aparente indiferença, a indignação, alguns picos de emoção e, sobretudo, um pragmatismo sóbrio e amargo. Não se pode falar em estoicismo (aliás, Nathalie demonstra pouca propensão para derivar algum consolo da filosofia que ensina), mas antes de uma pulsão para dar continuidade à vida e para manter a lucidez que inclui uma forte dose de instinto, o mesmo instinto de que a gata da mãe dá mostras quando é pela primeira vez posta em contacto com a natureza. Não há epifanias nem redenções neste filme, cujo término, apesar de soar justo, surge num momento aparentemente arbitrário da narrativa e não coincide com qualquer ponto de inflexão libertador, tão do agrado de argumentistas medíocres. Entre as muitas coisas que se poderiam ainda dizer sobre este filme admirável, saliente-se apenas os planos em que Hansen-Løve coloca Nathalie em cenários naturais semi-selvagens (Bretanha, Vercors) quase abstractos, e ainda o uso da música (Schubert, Woody Guthrie…); em ambos os casos, a justeza do tom dispensa a pertinência narrativa. Como não é nosso costume afirmar o óbvio, terminemos com a referência à presença do rivetteano André Marcon (no papel do marido), em vez de aludirmos à excelência de Isabelle Huppert. Este filme recebeu o Urso de Prata de melhor realizador no festival de Berlim.

12 de junho de 2016

Listen Up Philip


Visto em DVD, Listen Up Philip (2014), a terceira longa-metragem de Alex Ross Perry (n. 1984), gira em torno de um jovem escritor (interpretado pelo excelente Jason Schwartzman) depois da publicação do seu segundo romance. Narrado em voz-off, como uma ficção, pelo actor e escritor Eric Bogosian, o filme acompanha igualmente as personagens que gravitam em torno de Philip, nomeadamente Ike Zimmerman (Jonathan Pryce), um escritor mais velho e já consagrado que decide apadrinhá-lo, a namorada Ashley (Elizabeth Moss), o gato Gadzookey, adoptado por Ashley quando Philip decide deixar a cidade por uns tempos, além de outras novas e antigas namoradas com quem Philip se vai confrontando. Os modelos de escritor e de literatura explorados no filme estão muito próximos dos de certos romancistas americanos do sexo masculino, como Philip Roth ou algum Saul Bellow, com obras que se alimentam de maus sentimentos em relação às mulheres, encaradas apenas como caixas de ressonância para desabafos mais ou menos egocêntricos. Os movimentos de câmara e a rarefacção da linearidade narrativa recordam o cinema de Cassavetes nos seus primeiros tempos, mas quando o próprio Alex Ross Perry escreveu que Listen Up Philip é um filme sobre a agressividade e as energias negativas da cidade de Nova Iorque, integrou-se imediatamente numa família de realizadores de que fazem parte Woody Allen e Noah Baumbach. Também Allen e Baumbach fazem filmes sobre Nova Iorque, sem hesitarem em mostrar o lado mais mesquinho da cidade e das suas personagens. Em comparação com estes dois realizadores, contudo, parecem faltar a Perry algum sentido de humor e um certo distanciamento irónico. Para Perry, as características mais importantes das personagens são as suas fraquezas, raramente ou nunca compensadas por virtudes redentoras. Em contraste com os filmes de Woody Allen e Noah Baumbach, que exploram um espectro de emoções e circunstâncias mais complexo e mais amplo, Listen Up Philip resulta essencialmente como um excelente instrumento de exploração dos fracassos no amor, na amizade e na vida em geral. É um filme que não oferece redenções nem resoluções satisfatórias, mas que, mau grado a sua negatividade, deixa espaço para a capacidade de seguir em frente e superar o medo da solidão.

5 de junho de 2016

Alexandre Nevsky


Está a decorrer até ao próximo dia 13 de Julho, no Espaço Nimas, um excelente “Ciclo Grande Cinema Russo”, organizado pela Medeia Filmes. O Cinéfilo Preguiçoso não podia ficar indiferente. Alexandre Nevsky (visto no dia 3 de Junho, repete no dia 20), estreado originalmente em 1938, foi o primeiro filme sonoro de Sergey Eisenstein (em co-realização com Dmitry Vassiliev), tendo sido concebido como um alerta patriótico em face da ascensão da ameaça nazi, aqui posta em paralelo com as invasões teutónicas da Rússia no século XII. Esqueça-se o argumento, de um maniqueísmo que chega a ser aflitivo. Esqueça-se a enfadonha personagem do príncipe Nevsky e a sua retórica monocórdica. Assinale-se a tentativa de introduzir algum comic relief e uma componente humana e romântica através das personagens de Vassily, Gavrilo, Olga e Vassilissa, (embora seja difícil não estabelecer comparações desfavoráveis com um filme como La Marseillaise, de Jean Renoir, estreado no mesmo ano e que se distingue pela complexidade e riqueza das suas personagens, sem abdicar da alegoria nem da mensagem). Aquilo que faz de Alexandre Nevsky uma obra-prima é a sua dimensão plástica: a montagem, os magníficos planos de paisagens e multidões, o fabuloso preto-e-branco de Eduard Tissé, a lendária partitura de Prokofiev e sobretudo o modo como todos estes elementos se harmonizam para conferir uma notável unidade estética ao filme, culminando numa das mais extraordinárias cenas de batalha da história do cinema. Alexandre Nevsky pode parecer-nos hoje francamente datado nalguns aspectos, devido às circunstâncias históricas que presidiram à sua concepção e à apertada vigilância exercida pelo Kremlin, que impediu derivas formalistas excessivas por parte do realizador. Se o filme ainda hoje nos impressiona, é enquanto manifestação de cinema puro (deixando de lado os debates, sempre úteis mas quase sempre infrutíferos, sobre a “pureza” e “impureza” do cinema): corpos, luz e sons em movimento, amalgamados num todo vibrantemente superior às suas partes.