Em O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (2016), seguimos o percurso de Fernando, um ornitólogo que se dedica à observação dos hábitos de várias espécies de aves enquanto desce o rio Douro de caiaque, numa zona isolada e quase desprovida de presença humana. Uma distracção na aproximação a uns rápidos quase precipita o seu afogamento. Acaba por ser salvo por duas improváveis peregrinas chinesas, mas esse é apenas o começo de uma sequência de aventuras e encontros, cada vez mais bizarros, repletos de referências etnográficas, mitológicas e sobretudo cristãs. De forma progressiva, e sem concessão a qualquer lógica ou realismo, Fernando metamorfoseia-se em Santo António e acaba o filme na berma da estrada, a caminho de Pádua; não falta sequer um sermão aos peixes. Essa transformação ocorre em paralelo com a substituição gradual do actor principal, Paul Hamy (uma agradável surpresa), pelo próprio realizador – até à sequência final do filme, em que João Pedro Rodrigues assume totalmente o papel de Fernando/António. A multiplicidade de alusões, citações e referências é desconcertante. Fica a impressão de que, mais do que impor uma qualquer leitura simbólica coerente, João Pedro Rodrigues pretendeu descrever um percurso do registo realista para o registo onírico e fantástico, da lucidez para a alucinação. O Ornitólogo dispensa densidade hermenêutica; é visualmente empolgante e poderoso na sua singularidade de objecto desligado de qualquer justificação ou contexto. A singularidade não exclui a tentação de apontar semelhanças com Veredas (1977), de João César Monteiro (onde o Portugal profundo é palco de intersecções inesperadas entre o mito e a realidade) e O Desconhecido do Lago (2013), de Alain Guiraudie (o elemento líquido, a proximidade entre o desejo e a morte…). João Pedro Rodrigues recebeu o Leopardo para Melhor Realização no Festival de Locarno, por este filme.
30 de outubro de 2016
23 de outubro de 2016
Café Society
Devido
não só à preguiça mas também a uma concentração inusitada de prazos,
deslocações, compromissos e falta de disponibilidade mental para estudar a
programação, este ano o Cinéfilo Preguiçoso não verá um único filme do
DocLisboa. Em contrapartida, não perdeu Café
Society (2016), o filme mais recente de Woody Allen (e primeira colaboração
deste com o lendário director de fotografia Vittorio Storaro, também
responsável por filmes como O Último
Tango em Paris ou Apocalypse Now).
Café Society passa-se em Hollywood e
Nova Iorque nos anos trinta do século vinte, encenando uma defesa ambígua da
vida simples, em contraste com os ambientes retratados. A estrutura narrativa
divide-se entre uma intriga romântica e uma história de gangsters relacionada
com a família de um dos protagonistas, que parece flagrantemente lateral e acaba
por desequilibrar o filme. Na intriga romântica, reencontramos o tema dos erros
nas escolhas, associado à ideia rohmeriana de que o parceiro mais adequado é
não o escolhido mas sim o encontrado. O encanto do filme resulta tanto da presença
e do desempenho dos actores nos papéis principais – Jesse Eisenberg (Bobby) e
Kristen Stewart (Vonnie) – como do facto de Woody Allen os filmar de um modo
inédito. Talvez nunca se tenha visto um Jesse Eisenberg tão contido e resignado
como na segunda parte deste filme, reforçando a ideia de que a passagem do
tempo traz sempre mais consequências do que inicialmente se pensa. Por sua vez,
Kristen Stewart é filmada como uma estrela do passado, mas sempre um pouco deslocada,
sem perder uma certa componente quotidiana, contemporânea e independente que a
distingue, em oposição a Blake Lively (Veronica), muito bonita, porém isenta de
qualquer densidade dramática – no que, aliás, espelha a própria falta de
densidade não só da sua personagem mas também dos universos em que circula. O
fim do filme, um dos momentos mais puramente românticos do cinema de Allen de
há muitos anos para cá, é o seu ponto mais alto. Não sabemos o que acontecerá a
seguir, mas naquele momento os protagonistas parecem perceber a verdadeira
dimensão do erro cometido. É um momento de paragem e compreensão, coisa tão
rara nos dias que correm.
16 de outubro de 2016
Barbara
Barbara (2012) foi a sexta longa-metragem de Christian Petzold, um dos representantes da chamada “Escola de Berlim”. Tal como em Phoenix (2014, filme seguinte do mesmo realizador, protagonizado igualmente por Nina Hoss e Ronald Zehrfeld), a história gira em torno de personagens cujo passado atribulado, progressivamente revelado, condiciona os seus comportamentos e decisões. A personagem principal é uma pediatra que, na Alemanha Oriental de 1980, é punida com o desterro para um hospital de província por ter pedido autorização para abandonar o país. Apesar de alguma frieza, vista como arrogância pelos colegas, Barbara revela competência e empatia com os seus doentes, ao mesmo tempo que se aproxima de André, o director de serviço, também ele desterrado devido a um erro médico; entretanto, prepara em segredo a sua fuga, em conivência com o amante da Alemanha Ocidental. Petzold adopta uma abordagem linear e sóbria, deixando que as personagens e os actores (sobretudo Hoss, com quem colaborou em quase todos os seus filmes) se exprimam. O registo esparso e objectivo só é interrompido numa cena quase fantasmagórica perto do final do filme, junto ao mar, e em alguns momentos entre o surreal e o burlesco (as criadas de um hotel fazendo o pino para evitar as varizes, ou o diálogo sobre as virtudes de um Mercedes, a poucos metros do local onde Barbara se encontra com o amante, em plena floresta). Todo o filme converge para a decisão final de Barbara, que abdica da oportunidade de fugir e de ser livre, em benefício de uma doente sua de quem se aproximou. O facto de Petzold deixar em aberto todas as leituras e motivações possíveis (sentido do dever?, paixão por André?, desilusão em relação ao amante?, patriotismo residual?, resignação?) permite que se insinue uma impressão de moralismo e conformismo que não era decerto o efeito pretendido. Para quem se interessa por estas coisas (o Cinéfilo Preguiçoso interessa-se), Petzold recebeu por este filme o Urso de Prata para melhor realizador no Festival de Berlim de 2012, o mesmo que consagrou Tabu (2012), de Miguel Gomes, com o prémio Alfred Bauer. Nesse ano o Urso de Ouro foi para os irmãos Taviani e Mike Leigh presidiu ao júri.
9 de outubro de 2016
Um Editor de Génios
Baseado no
livro Max Perkins: Editor of Genius,
de A. Scott Berg, Um Editor de Génios
(2016), filme de estreia do encenador Michael Grandage, gira em torno da
história do editor da Scribner Maxwell Perkins (Colin Firth), que descobriu e
trabalhou com escritores como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald ou Thomas
Wolfe (Jude Law), o outro protagonista do filme. As actividades de ler,
escrever, editar, rever e discutir correcções ou cortes num texto podem ser
cinematográficas? A julgar por este filme, nem por isso. Sem saberem como
abordar visualmente esta dimensão tão importante da vida das personagens, o
realizador e o argumentista John Logan investiram tudo no contraste fácil entre,
por um lado, o clichê do escritor espalhafatoso que supostamente escreve como
vive e sobre o que vive e, por outro, o editor calmo, metódico e rigoroso,
totalmente obcecado pelo trabalho. Esta opção transforma o que poderia ser um
filme interessante sobre escrita e edição num festival de interpretações
previsíveis: Colin Firth fazendo de si próprio; Jude Law não só ainda mais
canastrão e irritante do que é habitual, mas também dado a acessos de
incontinência verbal e gestual muito para lá daquilo que a personagem pedia. As
cenas em que alguém escreve ou edita são fugazes e decorativas, funcionando
mais como separadores do que como motor da narrativa. Apesar de ser apresentado
como escritor prolífico, Thomas Wolfe raramente é mostrado a escrever. O mais
interessante de Um Editor de Génios
acaba por ser a reconstituição histórica de Nova Iorque na época da Grande
Depressão, associada à evocação de uma geração de escritores com vidas e
estilos divergentes, mas com fins igualmente trágicos. A oposição mais irónica
é aquela que se estabelece entre Thomas Wolfe e Scott Fitzgerald: o primeiro
enquanto escritor torrencial que produz sucessos de vendas; o segundo como
alguém que, além de se debater com dificuldades para conseguir escrever e
sobreviver, é mal recebido pelos contemporâneos (na única sequência do filme
que suscita um sorriso, Scott Fitzgerald lamenta o facto de no ano anterior ter
recebido pouco mais de dois dólares de direitos por The Great Gatsby). Obviamente, a ironia reside no facto de
actualmente quase ninguém se lembrar de Thomas Wolfe, enquanto Fitzgerald
continua a ser estudado e celebrado. É sempre bom que o cinema nos recorde que adivinhar
o futuro da literatura é uma tarefa delicada.
2 de outubro de 2016
A Lagosta
Desta vez a escolha do Cinéfilo Preguiçoso recaiu sobre A Lagosta (2015), de Yorgos Lanthimos, realizador grego que adquiriu grande notoriedade desde Canino (2011). Tal como este, A Lagosta descreve um mundo fechado e regido por leis rígidas, aplicadas com violência extrema. O percurso da personagem principal, David (Colin Farrell, numa interpretação sóbria e eficaz), vai permitindo ao espectador descobrir as regras de uma sociedade que desencoraja a solidão e a condição de solteiro, ao ponto de ser dado aos cidadãos desemparelhados um prazo para encontrarem um companheiro, findo o qual serão transformados num animal à sua escolha. Lanthimos tenta, com sucesso variável, fazer a atenção atribuída às peripécias vividas por David coexistir com os significados metafóricos do filme, mais ou menos subtis. A Lagosta funciona melhor quando aposta no humor negro e menos bem quando se desdobra em novas ramificações e subenredos para refinar a componente de crítica social. A impressão geral é a de um filme engenhoso e muito meditado, mas que faz lembrar demasiadas vezes o pior Haneke e deixa o espectador a suspirar pelo melhor Kubrick. Na coluna dos activos, mencione-se ainda a fotografia e os cenários: a alternância entre o hotel antiquado onde os solitários esperam pela alma gémea ou pela metamorfose, a floresta frondosa onde David encontra um exército de rebeldes (tão fanáticos na defesa do celibato como os seus oponentes na imposição da conjugalidade) e o ambiente urbano anónimo da grande cidade contribui para a atmosfera distópica. A Lagosta recebeu o prémio do júri do festival de Cannes de 2015 (presidido pelos irmãos Coen).
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