15 de dezembro de 2024

Four Quartets

O fim de 2024 aproxima-se e, com ele, uma merecida pausa, talvez sine die, do Cinéfilo Preguiçoso. Felizmente, os deuses do acaso foram generosos e permitiram-nos terminar com T.S. Eliot e Ralph Fiennes. Nada mal. Em 2021, Fiennes apresentou em Londres uma encenação de um dos poemas mais importantes do século XX: Four Quartets. No ano seguinte, Sophie Fiennes, irmã do actor, estreou uma adaptação para cinema agora disponível no videoclube de uma operadora de telecomunicações. As ideias de teatro filmado e de fazer teatro a partir de um poema com mais de mil versos geram logo um conjunto de receios. Quando vemos este filme, no entanto, percebemos imediatamente que tem dois trunfos inquestionáveis: um grande texto e um grande actor, familiarizado com Eliot desde a infância (Eliot era um dos escritores preferidos da mãe de Fiennes, a romancista Jennifer Lash, e a família costumava ouvir uma gravação em vinil do autor a ler este poema). Fiennes dá-nos luz, uma mesa e duas cadeiras, pouquíssima música. Está descalço, com roupas em tons terra, e fala metodicamente e devagar, como se pensasse à nossa frente. Este é o espectáculo: compreender intimamente um texto e permitir-nos compreendê-lo também. Não é preciso mais nada. As palavras de Eliot instalam-se na nossa vida. Antes do início, talvez se considere a hipótese de interromper a dada altura, se se tornar muito cansativo, mas, logo que o filme começa, ficamos simplesmente suspensos de cada palavra, expressão e respiração do actor. As cenas no palco são entrecortadas por imagens dos espaços (jardim, campo, praia) identificados nos títulos das diferentes secções do poema, e a alternância entre voz humana e imagens estáticas faz lembrar, por vezes, os filmes de Huillet/Straub. Sophie Fiennes constatou que estes espaços ainda correspondem na perfeição à descrição que Eliot deles faz, o que demonstra em acto a própria noção de tempo explorada no poema. Estudando a estrutura de Four Quartets, a realizadora decidiu articular as diferentes paisagens e tons do poema com os planos: quando se fala da natureza, são mais amplos; se a paisagem é urbana, são mais próximos; as passagens mais líricas correspondem aos planos mais próximos do actor e as mais metafísicas suscitam movimentos de câmara mais fluidos. Inevitavelmente, falta ao filme a proximidade física e temporal que, nos melhores momentos, se sente numa sala de teatro, mas é uma experiência inesquecível, mesmo assim.

O Cinéfilo Preguiçoso faz agora uma pausa por tempo indeterminado. Obrigado a todos os que acompanharam as nossas publicações, que começaram há dez anos e um dia. Escrevemos sobre cerca de meio milhar de filmes. Foi bom saber que havia quem, do outro lado, nos lesse, partilhando ou discordando do nosso entusiasmo ou cepticismo. Até qualquer dia!

Alda Rodrigues e Alexandre Andrade

8 de dezembro de 2024

Dahomey

Existem semelhanças entre a biografia e os percursos artísticos de Alice Diop, realizadora do extraordinário Saint Omer (2022), e Mati Diop, autora de Dahomey (2024), visto esta semana no cinema: francesas de ascendência senegalesa, da mesma geração, dedicaram-se essencialmente ao documentário antes de experimentarem a ficção. Ambas foram consagradas em grandes festivais graças a estes filmes: Leão de Prata na Mostra de Veneza, em 2022, e Urso de Ouro em Berlim, em 2024, respectivamente. Enquanto Saint Omer é, entre tantas outras coisas, sobre a integração de imigrantes na cultura francesa, Dahomey é um documentário que explora os efeitos na vida de uma ex-colónia africana da decisão do governo francês de restituir obras de arte pilhadas. Pode haver a tentação de relacionar este filme com o famosíssimo Les Statues Meurent Aussi (1953), de Alain Resnais, que se debruça sobre a degradação do significado das obras de arte africanas quando são transplantadas para museus ocidentais, mas seria um erro fazer depender o seu valor de diálogos ou comparações. Dahomey é um filme poderosíssimo que, para fazer uma (última) menção ao filme de Resnais, mostra, de certa forma, a ressurreição das estátuas mortas e o seu regresso ao território de origem. Esta ressurreição é acompanhada por ansiedade e confusão: Mati Diop dá voz à estátua de Ghézo, um dos soberanos do antigo reino do Daomé, que se interroga sobre o que irá encontrar quando voltar a ver o seu país, que passou a chamar-se Benim. Depois de uma primeira parte em França, em que vemos os gestos meticulosos de acondicionamento e transporte das estátuas, a atenção da realizadora centra-se no seu destino e mostra-nos os preparativos e as reacções suscitadas por este acontecimento, que resultou de um pedido do presidente beninense Patrice Talon, rejeitado pelo presidente François Hollande e posteriormente aceite por Emmanuel Macron, sob a forma de uma lei que se aplica a apenas uma pequena fracção dos artefactos saqueados em 1892. Diop não se interessa por cerimónias oficiais nem por discursos; privilegia situações mais ou menos colaterais, como a chegada de dignitários trajados a rigor ou um debate intenso entre jovens sobre o significado e alcance da restituição. Este debate, que ocupa uma parte significativa do filme, é fascinante não só pelos argumentos que são apresentados, mas também pela maneira dinâmica e criativa como é filmado: combinando intervenções apaixonadas com os gestos e poses distraídos ou fatigados dos espectadores, fornece um retrato de uma sociedade cheia de vitalidade e de vontade de discutir o seu passado e o seu futuro. A tensão entre o passado e o futuro em construção, entre a voz soturna do antigo rei do Daomé e as vozes empolgadas dos jovens beninenses, é o fulcro de Dahomey, cujo registo híbrido o aproxima da ficção: sentimos que tanto o antigo rei Ghézo como qualquer um dos estudantes envolvidos no debate poderiam ser personagens, ganhar vida própria e protagonizar um filme. Diop consegue a proeza de nos mostrar como um processo cujo significado se poderia restringir ao plano simbólico acaba por afectar a vida das pessoas. Para finalizar, assinale-se que Mati Diop tem seguido uma carreira como actriz em paralelo com a actividade de realização. Alguns dos leitores poderão lembrar-se dela no papel da filha de Alex Descas no belíssimo 35 Rhums, de Claire Denis (2008).
 
Ler também: All the Vermeers in New York (1990); O Grande Museu (2014); National Gallery (2014).

1 de dezembro de 2024

Quando Chega o Outono


Se fizermos as contas, o Cinéfilo Preguiçoso já escreveu sobre cinco filmes de François Ozon e segue a obra deste realizador desde  Sob a Areia (2000) e Swimming Pool (2003), duas longas-metragens que suscitam um fascínio que se vai aprofundando ao longo dos anos. Nos melhores filmes de Ozon, há muitas vezes uma dimensão deceptiva: não se percebe imediatamente que história está a ser contada. Saímos do cinema a achar que vimos uma coisa e só quando começamos a pensar compreendemos que afinal há elementos em que não reparámos logo. Ozon é exímio na subversão discreta das convenções dos vários géneros cinematográficos que tem explorado, do musical ao thriller. À superfície, Quando Chega o Outono (2024, visto em sala) é um filmezito realista e simples, sobre uma senhora idosa (Hélène Vincent) vagamente suspeita e misteriosa, que vive numa aldeia da França profunda e tem uma filha (Ludivine Sagnier), problemática e hostil, e um neto amoroso. Com o tempo, no entanto, vamos percebendo como neste filme se cria uma estranha família de três, numa casa de uma floresta onde é sempre Outono e há cogumelos venenosos, fantasmas, segredos escabrosos e, no fim, uma Branca de Neve ou Bela Adormecida. Ninguém é exactamente o que parece ser e algumas personagens podem saber bem mais do que revelam. A história progride através de acidentes, da força dos desejos mais ou menos inconscientes das personagens, dos primeiros sinais de senilidade da protagonista, ou de crimes e estratagemas através dos quais se descartam pais e mães imperfeitos? Talvez a estranheza maior deste filme seja ter uma protagonista dúbia, que comete erros, mas, apesar de nunca se sentir culpada, não é castigada. Pelo contrário, é-lhe permitido corrigir os elementos insatisfatórios da sua vida e concretizar os seus desejos, mesmo que para isso seja preciso sacrificar outras personagens. Nem sempre se percebe como ela consegue levar avante as suas intenções: por vezes, ocorrem hiatos bruscos que dão um contorno ainda mais enigmático à personagem. Como os contos de fadas, Quando Chega o Outono tem um final feliz, mas, ao contrário dos contos de fadas, não transmite lições de moral. E, já que falamos de cogumelos, talvez seja interessante recordar também o excelente Linha-Fantasma (Paul Thomas Anderson, 2017), um filme que, à sua maneira ambígua, também funciona como um conto de fadas com alguns elementos inesperados, entre os quais um jantar com cogumelos perigosos.

Outros filmes de François Ozon no Cinéfilo Preguiçoso: Verão de 85 (2020); O Amante Duplo (2017); Frantz (2016); Uma Nova Amiga (2014); 5 x 2 (2004).

24 de novembro de 2024

Jardins de Pedra

A acção de Jardins de Pedra (Francis Ford Coppola, 1987), visto esta semana em DVD, situa-se mais ou menos na época de Apocalypse Now (1979) e explora o mesmo tema principal: a guerra do Vietname. Enquanto em Apocalypse Now se mostra a realidade da guerra de forma brutal e contínua, em Jardins de Pedra quase tudo se passa fora de campo, à distância. As personagens principais são militares integrados num batalhão que, no cemitério de Arlington, dispensa aos que morreram em combate as honras militares que o protocolo determina. Apesar tanto da impressão de ordem e tranquilidade marcial que impera como da distância entre a costa leste dos E.U.A. e o teatro de operações, é sempre a guerra que determina os actos, pensamentos, dúvidas e aspirações das personagens. A relação entre o sargento Hazard (James Caan) e o jovem idealista Willow (D.B. Sweeney) é regida pela tensão entre o cepticismo do primeiro, que já não acredita nesta guerra, e o voluntarismo do segundo, convencido de que o lugar de um soldado é na linha da frente. Quer o perfil destas personagens, quer o sentimento paternal que Hazard nutre para com Sweeney são bastante típicos de filmes de guerra. Apesar do carácter atípico do cenário, em que a dimensão cerimonial e os exercícios substituem a violência da guerra real, muitas das situações são também comuns a numerosos filmes: o ambiente de quartel, a masculinidade tóxica, as piadas pueris, as personagens femininas como elo de ligação ao mundo extramarcial. O principal problema de Jardins de Pedra talvez seja a incapacidade de desenvolver as personagens para lá do estereótipo. O argumento de Ronald Bass, baseado num romance de Nicholas Proffitt, esgota-se quase sempre na sua função de veículo para ilustrar as situações e relações entre as personagens. Isto poderia ser adequado para um filme mais ousado do ponto de vista formal, mas Coppola, que nunca foi avesso à experimentação – relembrem-se filmes como Do Fundo do Coração (1982), Rumble Fish (1983) ou o recente Megalopolis (2024) –, assina aqui um filme pautado pela sobriedade e eficácia. A impressão que resulta disto tudo é de competência, mas também de algum convencionalismo. Jardins de Pedra vale essencialmente pela maneira como serve de contrapeso a Apocalypse Now e também por ilustrar o poder que a carnificina do Vietname teve para destruir e agitar vidas, no local e à distância.
 
Outros filmes de Francis Ford Coppola no Cinéfilo Preguiçoso: The Outsiders (1983); Tucker Um Homem e o Seu Sonho (1988); Tetro (2009); Megalopolis (2024).

17 de novembro de 2024

Estranha Sedução

Há algum tempo que o Cinéfilo Preguiçoso queria ver Estranha Sedução/The Comfort of Strangers, de Paul Schrader (1990, disponível em DVD). É um filme com várias características que, logo à partida, suscitam curiosidade: passa-se em Veneza; é realizado por Paul Schrader; adapta um romance de Ian McEwan (1981); e tem não só argumento de Harold Pinter, mas também banda sonora de Angelo Badalamenti, além de um elenco com Christopher Walken, Helen Mirren, Natasha Richardson e Rupert Everett. O resultado da combinação de todas estas componentes é, no mínimo, invulgar. O argumento chegou a Schrader já pronto, como projecto em busca de um realizador. Em entrevistas, Schrader faz questão de salientar que o filme conjuga as sensibilidades de três autores. Na obra de McEwan, salienta o desconforto que as imagens sem regras do inconsciente podem suscitar. Em relação às personagens de Pinter, faz notar que usam a linguagem para disfarçar as emoções, falando de tudo menos do que as preocupa e dizendo coisas que nada têm que ver com o que querem dizer. Sobre o seu próprio trabalho, alega que se limitou a criar uma superfície bela e irresistível que, à semelhança da superfície amável da linguagem, disfarça realidades mais perigosas. Estranha Sedução gira em torno de um casal inglês que, no limiar da desintegração em face dos dilemas típicos dos casais, decide repetir uma viagem a Veneza, cidade que tinha visitado apenas três anos antes. São duas personagens que, apesar de raramente discutirem, reagem com descontentamento silencioso e quase indiferente à acumulação de pequenas desfeitas e faltas de atenção mútuas. Em contraste com a dimensão banal ou comezinha desta relação, os percursos que as personagens traçam em Veneza vão, contudo, adquirindo cada vez mais estranheza. Claramente com o objectivo de evitarem qualquer confusão entre Estranha Sedução e Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973), filmes com evidentes pontos em comum, Schrader e Dante Spinotti, o director de fotografia, optaram por uma paleta com tons ocres e vermelho-tijolo, sob um céu bem azul, quase turístico, enquanto o filme de Roeg privilegia tons invernais mais frios, castanhos e brancos. Veneza, no entanto, continua retorcida sobre si mesma, com passagens por explorar, e cravejada de edifícios antigos, no interior dos quais nunca se sabe o que se vai encontrar. Após um encontro supostamente fortuito com Robert/Christopher Walken, uma personagem sempre vestida de branco, como um anjo da morte, que parece existir para contar sempre a mesma história, tudo muda para aquele casal que até na beleza parecia convencional. As personagens perdem-se em Veneza, a ponto de terem de dormir ao ar livre, esfomeadas, por não conseguirem encontrar o hotel. Não se percebe por que razão não resistem mais a quem suspeitam que pode destruí-los, mas, obviamente, o toque mais marcante de Schrader neste filme é traduzir em imagens venezianas a pulsão de morte que até dentro das personagens mais belas e banais é possível encontrar. Em Estranha Sedução as personagens comportam-se mais como autómatos que cumprem um programa prévio do que como agentes capazes de determinarem os acontecimentos, e erram ao sabor dos impulsos e dos desejos inconscientes. É difícil decifrar intenções ou significados num filme que resultou do trabalho sucessivo de personalidades artísticas tão fortes – e ainda bem. Estranha Sedução vale pela opacidade e pela maneira como deixa o tédio e a arbitrariedade precipitarem os acontecimentos, rumo a um final inevitavelmente funesto.

Outros filmes de Paul Schrader no Cinéfilo Preguiçoso: No Coração da Escuridão (2017), The Card Counter (2021); Master Gardener (2022).

Outros filmes em Veneza: Summertime (David Lean, 1955); Eva (Joseph Losey, 1962); Giro Turistico senza Guida (Susan Sontag, 1983); Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973).