17 de março de 2024

Saint Omer

Considerado pela crítica um dos melhores filmes de 2022 e premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza, Saint Omer (Alice Diop, 2022) estreou na TV Cine no dia 14 de Março e ainda bem que o Cinéfilo Preguiçoso reparou nisso. Esta longa-metragem tem alguns pontos em comum com o excelente Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023): são ambos «filmes de tribunal», em que assistimos ao julgamento de uma mulher desenraizada, tratada como outsider. Nos dois casos, somos convidados implicitamente a reflectir sobre as pressões a que as mulheres estão sujeitas numa sociedade não só patriarcal e misógina, mas também, no filme de Diop, colonialista e racista. Em ambos, nos interrogamos se estas «forças maiores» podem ou não ajudar a desencadear um crime. Saint Omer e Anatomia de Uma Queda são também, cada um à sua maneira, filmes poderosíssimos, baseados em palavras e depoimentos, com argumentos notáveis e excelentes actrizes: Anatomia de Uma Queda é mais cerebral; Saint Omer convoca referências obscuras, relacionadas tanto com a mitologia grega (o mito de Medeia) como com a cultura senegalesa (feitiçaria, etc.). Com autoria de Amrita David e da escritora Marie N’Diaye, o argumento do filme de Diop baseia-se nas transcrições do julgamento de Fabienne Kabou, uma estudante senegalesa, imigrante em França, que matou a sua própria filha de quinze meses; segundo Diop, que antes deste filme realizou apenas documentários, estes depoimentos já tinham um tom literário que considerou inspirador. Rama, a personagem principal do filme, é uma professora de literatura que assiste ao julgamento, identificando-se com a acusada, e grava os depoimentos, que depois escuta atentamente no quarto de hotel. A propósito do peso das palavras no filme, num dos seus momentos mais flagrantemente irónicos, uma professora de Filosofia explica que desencorajou a protagonista de estudar Wittgenstein na sua tese porque uma mulher africana nunca poderá compreender um filósofo austríaco e deve escolher um tema «mais próximo da sua cultura» – sem perceber que, por essa ordem de ideias, Wittgenstein também seria inacessível a uma mulher francesa como ela e a obra do próprio Wittgenstein se tornaria insignificante, por se circunscrever a um público demasiado restrito. Esta referência a Wittgenstein, de certo modo, chama a atenção para o que é inacessível às palavras («aquilo de que não se pode falar»). Por sua vez, do ponto de vista visual e conceptual, através de grandes planos, de clips de outros filmes, ou de flashbacks nem sempre fáceis de decifrar, que remetem para a infância de Rama, Alice Diop procura uma maneira de mostrar o que não pode ser visto. Na direcção de fotografia, temos Claire Mathon, que desempenhou as mesmas funções nos dois últimos filmes de Céline Sciamma: Retrato de Rapariga em Chamas (2019) e Petite Maman (2021). Curiosamente, Saint Omer partilha com Petite Maman um dos seus temas mais importantes – a relação entre mães e filhas, que, num dos momentos mais fortes e inesquecíveis do filme, leva uma personagem a descrever todas as mulheres como monstros, num tom que não é pejorativo. Em Saint Omer, temos a surpreendente tour de force de a reflexão sobre a maternidade se processar a partir de um infanticídio – porque, mais do que um filme sobre culpa ou inocência, a longa-metragem de Diop é sobre a complexidade feminina. Vamos continuar a pensar nele durante muito tempo.

10 de março de 2024

Corpo e Alma

O Cinéfilo Preguiçoso segue com interesse uma rubrica do canal YouTube do site Konbini em que pessoas ligadas ao cinema escolhem DVDs das prateleiras de um videoclube parisiense e explicam as suas opções. Num destes vídeos, Wim Wenders elogiou Corpo e Alma (2017), um filme da realizadora húngara Ildikó Enyedi premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Os elogios e a descrição do filme suscitaram a curiosidade do Cinéfilo Preguiçoso, que tratou de comprar o DVD. Corpo e Alma segue a história de Endre, director de um matadouro, e Mária, recentemente contratada para o posto de responsável pelo controlo de qualidade. Nas entrevistas de um inquérito interno, motivado por um furto na farmácia do matadouro, a psicóloga responsável descobre que Endre e Mária têm sonhos semelhantes, que giram em torno de um veado e uma corça, vagueando numa floresta gelada em busca de alimento. Esta descoberta, que aproxima Mária e Endre, nunca é usada para explorações metafísicas: ao contrário do que o título poderia sugerir, não há uma tentativa assumida de explorar o contraste entre a existência terrena das personagens e uma dimensão onírica ou transcendente. Os sonhos partilhados são um elemento que nunca é explicado e que as personagens aceitam sem demasiado espanto. Esta decisão corajosa de usar os sonhos como dispositivo narrativo encontra paralelo no comedimento estilístico do filme. Embora tenha um ponto de partida insólito, a trajectória convergente das personagens é relativamente linear, sendo mostrada com simplicidade, apesar dos inevitáveis recuos e mal-entendidos. A personagem de Mária apresenta traços habitualmente associados ao espectro do autismo ou transtorno obsessivo-compulsivo, e o filme ressente-se, por vezes, de uma caracterização quase unicamente baseada nestas características. Compreende-se, no entanto, que Enyedi queira mostrar um percurso de aprendizagem sentimental a partir do zero quase absoluto: Mária tem de aprender tudo, desde a importância do contacto táctil até ao poder da música, e alguns desses momentos são dos mais conseguidos. Ficamos com a impressão de que Corpo e Alma partiu de uma única ideia de argumento bem definida e que explora essa ideia com inteligência e contenção. (E quem nos dera que se pudesse dizer o mesmo de tantos filmes que soçobram devido ao peso das intenções e dos significados com que o cineasta os sobrecarrega!) É também um filme que sugere que uma mudança de vida pode depender de acasos e fenómenos que, de tão absurdamente arbitrários, remetem para uma dimensão lírica, que não nos cabe tentar explicar, mas sim mostrar e respeitar.

3 de março de 2024

Vanya on 42nd Street

Um dos momentos mais inesquecíveis de Vanya on 42nd Street (Louis Malle, 1994, disponível no YouTube) é o início: os actores/personagens percorrem as ruas movimentadas de Nova Iorque em direcção ao New Amsterdam Theater, num edifício abandonado na 42nd Street, para participarem numa espécie de representação informal da peça Tio Vânia, de Tchékhov. (A primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso viu este filme foi em Paris, num primeiro de Maio chuvoso de 2006. Como era Dia do Trabalhador, muitas coisas estavam fechadas, mas os cinemas continuavam a funcionar. Foi como se a escolha da sessão, o percurso até ao cinema e a espera na fila para a bilheteira também fizessem parte do filme.) Dentro do New Amsterdam Theater, os actores e a assistência, um grupo de convidados do encenador André Gregory, conversam descontraidamente – quando damos por isso, o que inicialmente parecia um diálogo de circunstância afinal já pertence à peça. Esta diluição de fronteiras entre vida e teatro é uma das características mais interessantes do filme de Louis Malle, que aqui adopta uma abordagem próxima da do documentário. Este filme nasceu quando o realizador assistiu a uma das representações informais que Gregory organizou desta peça, ao longo de cinco anos, em pequenos teatros ou outros espaços alternativos, às vezes até em apartamentos de amigos. Os actores de Vanya on 42nd Street (entre os quais se destacam Wallace Shawn, Julianne Moore, Brooke Smith, Larry Pine) conhecem tão bem o texto – uma adaptação de David Mamet, a partir de uma tradução literal de Vlada Chernomordik, que preserva a agilidade dos diálogos sem perder a sua literariedade – que parecem situá-lo na sua própria vida. A peça de Tchékhov, apesar de ser sobre russos do século XIX que vivem num sítio isolado e se interrogam sobre o sentido das suas vidas, poderia ser sobre aqueles nova-iorquinos que lhe dão vida num teatro em que não podem usar o palco porque umas ratazanas roeram umas cordas – ou até sobre nós. Aliás, é interessante notar como este texto de Tchékhov, graças à concentração da acção em determinado espaço, ao entrecruzamento das relações das personagens e aos confrontos verbais entre elas, tem funcionado como fonte de inspiração cinematográfica. Só no Cinéfilo Preguiçoso, já foi referido a propósito de Setembro (Woody Allen, 1987) e de Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi, 2021). Há alguns pontos em comum entre este Vanya on 42nd Street e o excelente My Dinner with Andre (1981), em que Louis Malle já tinha trabalhado com André Gregory e Wallace Shawn: em ambos se filmam conversas entre personagens que reflectem sobre a sua própria vida. Tanto a conversa entre Gregory e Shawn como a representação da peça, a que assistimos em tempo real, podem transmitir a ilusão de que a câmara é usada como mero dispositivo de captação, num registo próximo do documentário. Com discrição e inteligência, Malle realizou estes dois objectos cinematográficos rigorosos e exaltantes, muito mais complexos e trabalhados do que à primeira vista pode parecer.

Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); Fogo-Fátuo (1963).

25 de fevereiro de 2024

Os Excluídos

O Cinéfilo Preguiçoso interroga-se muitas vezes sobre o que pode levar realizadores talentosos, com abundância de meios à sua disposição, a optarem por fazer filmes tão obedientes a convenções e tão pródigos em lugares-comuns e receitas narrativas que já foram usadas até à exaustão. Essa interrogação justifica-se perante Os Excluídos, de Alexander Payne (2023). Este filme é a enésima versão de uma história protagonizada por personagens que parecem nada ter em comum, mas descobrem afinidades inesperadas quando as circunstâncias as forçam a conviver. Neste caso, as circunstâncias são umas férias de Natal numa escola privada da Nova Inglaterra, no início dos anos 70: um professor de História irascível, um aluno em conflito com a mãe e o padrasto, e uma cozinheira que acabou de perder o filho ficam sozinhos na escola, o primeiro por incumbência, os outros por não terem para onde ir. Ao fim de dez minutos, qualquer espectador já percebeu para onde o filme se encaminha. Aos poucos, as personagens revelam traumas, inseguranças e aspirações que as aproximam, quebrando a hostilidade inicial. A mensagem é cristalina e, reconheça-se, louvável: todas as pessoas têm alguma coisa para ensinar, a natureza humana é a mesma, independentemente do estatuto social, da idade e do percurso. A espaços, em particular no segmento passado em Boston, há cenas bem conseguidas e convincentes que, no entanto, não chegam para dissipar a sensação de déjà vu: diálogos, situações e dinâmicas assemelham-se a muitos outros que qualquer cinéfilo já viu inúmeras vezes. É um exercício interessante estabelecer paralelos com obras como The Breakfast Club (John Hughes, 1985), sobre um grupo de estudantes que cumpre um castigo numa escola deserta, ou The Shining (Stanley Kubrick, 1980), onde a acção se passa nos corredores vazios de um hotel isolado pela neve – para citar apenas dois exemplos de filmes que, partindo de pressupostos semelhantes, se distinguem pela originalidade e pela capacidade de evitar o pântano das ideias feitas, ao contrário de Os Excluídos. Não se pode, porém, dizer que este seja um filme inteiramente falhado. As personagens são credíveis, Paul Giamatti é um grande actor, a competência técnica é inegável e alguns exteriores caracterizam-se por uma beleza tranquila e singela que é realçada pela excelente banda sonora. Ainda assim, é compreensível que o espectador saia da sala a pensar que o cinema pode ser muito, muito mais do que aquilo que viu desfilar diante dos seus olhos nas duas horas anteriores.
 
Outro filme de Alexander Payne no Cinéfilo Preguiçoso: Sideways (2004).  
 

18 de fevereiro de 2024

O Grupo

O Cinéfilo Preguiçoso continua interessado em ver filmes de Sidney Lumet, e o DVD de O Grupo (1966), baseado num romance de 1963 de Mary McCarthy com o mesmo título, já estava na lista de espera há algum tempo, não só pela associação a esta escritora e a este realizador, mas também por ser considerado uma espécie de precursor de séries como O Sexo e a Cidade e Girls. O enredo segue a história de um grupo de oito raparigas de classe alta que, depois de terminarem o curso em Vassar, em 1933, têm de enfrentar a vida real – entre a Grande Depressão e o início da Segunda Guerra Mundial. Dentro da obra de Lumet, podemos associá-lo a Doze Homens em Fúria (1957), também um retrato colectivo (embora no masculino) em que a individualidade das personagens não se perde. Aliás, em O Grupo, temos pena de não poder acompanhar a história de cada personagem individualmente, à medida que a narrativa avança, pontuada tanto pelo boletim informativo que anuncia casamentos, nascimentos e conquistas profissionais das colegas de faculdade, como pelas conversas em que as personagens, em grupos mais pequenos, comentam depreciativamente estes acontecimentos. Para encontrarmos uma personagem feminina próxima destas na obra de Lumet, teremos de a procurar na intensidade de Diana (Faye Dunaway) em Network (1976). Dando por si num mundo muito diferente daquele para o qual foram preparadas, as protagonistas do filme reagem com uma intensidade histérica e febril, o que terá levado Elizabeth Bishop a classificá-lo como um dos piores filmes que já tinha visto. O tom do livro, no entanto, como é típico da obra de McCarthy, é mais distanciado, cáustico e satírico. Ainda assim, o contraste entre o livro e o filme não é totalmente desinteressante. Já houve quem recordasse a obra de Whit Stillman a propósito desta longa-metragem, mas talvez fosse mais correcto dizer que se Whit Stillman alguma vez realizasse um filme de terror sobre ser mulher e tivesse Boris Kaufman como director de fotografia, o registo seria muito próximo deste. Mary McCarthy é impiedosa com as suas personagens, sujeitando-as a problemas financeiros, casamentos com homens prepotentes, dificuldade de obtenção de métodos contraceptivos, alcoolismo, violência doméstica, doenças mentais verdadeiras e falsas, etc. Quase ninguém escapa à infelicidade e nenhuma teorização das protagonistas sobre as suas próprias vidas as ajuda a assimilar o desapontamento. É interessante constatar que o livro de McCarthy tem alguma inspiração biográfica. A personagem mais próxima da autora é Kay (Joanna Pettet), precisamente aquela que acaba por ser mais punida pela incapacidade de se adaptar ao contraste entre os ideais e a realidade. Tal como Mary McCarthy, Kay casa-se uma semana depois de terminar a faculdade, com um aspirante a dramaturgo (interpretado por Larry Hagman, o JR da série Dallas). Num episódio sinistro, o marido alcoólico e infiel de Kay decide interná-la num hospital psiquiátrico sem o seu consentimento, como aconteceu à própria McCarthy, no seu segundo casamento, com o escritor e crítico Edmund Wilson. Mesmo que ver este filme de Sidney Lumet não seja sempre uma experiência agradável, continua a ser uma obra interessante graças à sua agilidade narrativa, ao interesse histórico, à riqueza das personagens e à sua influência em narrativas posteriores sobre mulheres.

11 de fevereiro de 2024

Vidas Passadas

Já não é a primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso se surpreende com o aumento da afluência de público nas salas que frequenta e que se pergunta se se tratará de uma tendência robusta ou de uma efémera flutuação estatística. A sala em que assistiu a Vidas Passadas (2023) estava apinhada, o que ainda é mais surpreendente por se tratar de um filme independente, parcialmente falado em coreano, e por ser a primeira longa-metragem de uma realizadora desconhecida, Celine Song, que até agora se tinha dedicado à escrita para teatro e televisão. É admissível que o facto de o filme contar uma história simples com contornos românticos, assim como a inesperada nomeação para Óscar de melhor filme, estejam a contribuir para a sua popularidade. Vidas Passadas centra-se na relação entre duas personagens, Na Young e Hae Sung, que começa com uma paixoneta infantil em Seul e persiste ao longo do tempo, sempre à distância, depois de Na Young emigrar com os pais para a América e acabar por se casar e enveredar por uma carreira de escritora. Quando Hae Sung, ao fim de vinte e quatro anos, finalmente a visita em Nova Iorque, interrogam-se sobre como seriam as suas vidas se tivessem tomado decisões diferentes. Vidas Passadas adopta um tom contido, sóbrio e plácido para contar esta história centrada nas angústias sobre as diferentes vidas alternativas, paralelas à existência real, a que o acaso e o livre-arbítrio nos conduzem. Nos diálogos entre estas personagens e Arthur, o marido norte-americano de Nora (nome adoptado por Hae Young na sua nova vida), surge recorrentemente uma palavra coreana que exprime um conceito budista afim da “providência” ou do “destino”. As duas personagens usam essa palavra para tentar explicar a sua relação à luz do que terão sido um para o outro em vidas passadas. A ambiguidade da palavra “vida” é explorada de forma subtil: pode referir-se a hipotéticas encarnações anteriores, num contexto budista, ou a épocas passadas de uma mesma vida, de que nos sentimos tão desligados como se tivesse sido outra pessoa a vivê-las. A maneira linear e despojada como Song conta esta história, claramente autobiográfica, é outros dos trunfos: recorrer a excessos emocionais e invenções estilísticas seria quase inevitavelmente uma receita para o desastre. Contudo, essa virtude coincide com a maior fraqueza do filme, que se mantém num registo brando e indistinto, a que falta alguma coisa que eleve Vidas Passadas ao patamar de obra genuinamente interessante e capaz de deixar marcas. Seja como for, saúde-se o sucesso que parece estar a obter. Não há razão para que os numerosos espectadores que passaram parte de uma tarde de Inverno na companhia deste filme tenham dado por mal empregado o seu tempo.

4 de fevereiro de 2024

Anatomia de Uma Queda

Quando vemos Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023), premiado com a Palma de Ouro, recordamos inevitavelmente um filme que estreou em Portugal há mais ou menos um ano: Tár (Todd Field, 2022). Ambos têm como protagonista uma mulher forte que cai em desgraça por motivos que não ficam totalmente esclarecidos. Nos dois filmes, damos por nós a perguntar-nos se desconfiamos da protagonista apenas por ser uma mulher com sucesso – uma figura tão rara, que só pode ter conquistado esse estatuto de modo desonesto, manipulando todos, claro. Talvez por explorar mais a noção de narrativa, Anatomia de Uma Queda é menos intenso do que Tár. Enquanto no filme de Todd Field estamos dentro da cabeça em desintegração da protagonista, no de Justine Triet situamo-nos numa sala de tribunal, um local onde todos tentam impor a sua própria descrição dos factos, sabendo que ganhará não a verdade, mas a versão mais convincente – como aliás afirma explicitamente um dos advogados. Sandra Voyter (Sandra Hüller), a protagonista sobre quem recai a suspeita de ter matado o marido, um escritor frustrado que supostamente lhe faz a vida negra, é, além disso, uma romancista de sucesso – portanto, alguém que sabe contar histórias. Esta capacidade reforça a desconfiança que suscita: em tribunal, o advogado da acusação chega a ler passagens dos seus livros para a incriminar. Enquanto espectadores, temos acesso apenas a um momento da vida deste casal, através do registo sonoro de uma discussão, feito pelo marido, e mesmo esta situação deixa lugar a dúvidas. É o único momento em que vemos o marido em acção; de resto, ele é sempre descrito por outros.  Em contraponto aos relatos da protagonista, temos os depoimentos contraditórios das testemunhas, mas também os do filho do casal, não menos contraditórios. O filho, deficiente visual desde um atropelamento que ajudou a minar a relação entre os pais, é uma personagem crucial,  que durante grande parte do filme parece ser a única pessoa que quer descobrir a verdade, em vez de impor uma versão própria dos factos. Como nunca ficamos com a sensação de que sabemos o que realmente aconteceu, podemos descrever Anatomia de Uma Queda como um filme que reflecte sobre o conceito de narrativa, mas sem propor uma narrativa unificadora. O Cinéfilo Preguiçoso já tinha visto um filme de Justine Triet (Sibyl, 2019), com temas e personagens relativamente próximos (escritores, psicanalistas e realizadores), mas Anatomia de Uma Queda é bastante melhor, por se dispersar menos em caminhos secundários. Como já tantos sublinharam, Sandra Hüller é uma actriz notável, mas convém destacar também mais dois actores: no papel de advogado de defesa, Swann Arlaud, de quem já vimos também um desempenho (ainda mais) impressionante, no papel de Yann Andréa, em Quero Falar sobre Marguerite Duras (Claire Simon, 2021); e ainda, no papel do filho cego, o extraordinário Milo Machado Graner (que esperamos ver em breve no próximo filme de Arnaud Desplechin).