Cinéfilo Preguiçoso
Alda Rodrigues e Alexandre Andrade
21 de julho de 2024
Conto de Verão
14 de julho de 2024
Detour
Entre muitos outros, David Lynch e Joel e Ethan Coen são fãs de Detour (Edgar G. Ulmer, 1945), o filme que o Cinéfilo Preguiçoso viu esta semana (no Filmin). Percebe-se bem de que modo pode ter sido inspirador para estes realizadores. Encontramos ecos, por exemplo, em Estrada Perdida (1997), de Lynch, ou nos filmes dos irmãos Coen em torno de criminosos amadores, indecisos e desastrados. Baseado num romance de Martin Goldsmith (1939), Detour acompanha o percurso de Al Roberts (Tom Neal), um pianista clássico frustrado que decide abandonar o emprego num clube nocturno em Nova Iorque e viajar à boleia até Los Angeles, com o objectivo de se casar com uma namorada relutante que se mudou para lá. Durante esta viagem, confronta-se com vários acasos e coincidências e toma uma série de decisões irracionais: para não ser acusado da morte (por causas naturais) do homem que lhe deu boleia, incorre em ocultação de cadáver, roubo de identidade e, mais tarde, homicídio involuntário. É como se Al Roberts sentisse uma culpa intrínseca pela qual deseja a punição. A história é narrada em voz-off pelo protagonista, num tom simultaneamente grandiloquente, comezinho e magoado, a partir de uma série de flashbacks desencadeados por uma canção («I Can’t Believe That You’re in Love with Me») que alguém põe a tocar na jukebox de um restaurante de estrada e que a noiva costumava cantar. Não podemos considerar Al Roberts um narrador totalmente fiável, mas estes acontecimentos, ainda assim, fazem sentido dentro da lógica dos pesadelos, concretizando a ideia de que o destino vence sempre. (Ironicamente, o actor escolhido para representar o papel principal foi mais tarde condenado por homicídio involuntário da sua terceira mulher, o que de certo modo parece reforçar toda a lógica do filme.) Edgar G. Ulmer, que trabalhou como assistente de Murnau, faz a ponte entre o expressionismo alemão e o film noir americano, intensificando as luzes e as sombras e explorando ângulos de câmara inesperados. Detour é um filme desconcertante até ao fim: ficamos sem certezas sobre a última cena. Tratar-se-á de uma prolepse que mostra o momento em que o protagonista será finalmente apanhado pela polícia, apesar de tudo indicar que mais um acaso o ilibou dos crimes em que está envolvido? Ou não passará de outra boleia, oferecida por um agente da polícia, sem ter reconhecido a sua identidade? Todas estas características inusitadas contribuem para que um filme de baixo orçamento se tenha tornado um clássico do cinema americano que ainda hoje vemos com interesse e perplexidade.
7 de julho de 2024
A Besta
30 de junho de 2024
Aquele Inverno em Veneza
Visto no Filmin por ocasião da morte do actor Donald Sutherland, Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973) é um filme que não se recomenda a quem tencione visitar esta cidade em breve. Veneza figura como um lugar inóspito, labiríntico, escuro, povoado de personagens suspeitas e talvez perigosas, com componentes degradadas e susceptíveis de desmoronamento, que sugerem que a morte está à espreita em cada esquina. Baseado na novela Don’t Look Now, de Daphne du Maurier, o filme acompanha a história de um casal (Donald Sutherland e Julie Christie) que, ainda a recuperar da morte de uma filha pequena, se instala nesta cidade onde o marido, que é arquitecto, irá supervisionar o restauro de uma igreja. Apesar de certos elementos com sabor datado (nomeadamente um certo espalhafato no modo como a personagem da vidente é retratada, ou a vertente algo kitsch da banda sonora de Pino Donaggio), Aquele Inverno em Veneza reúne várias características que contribuíram para que se tornasse um clássico de culto. Obviamente, o carácter sincopado da montagem, da responsabilidade de Graeme Clifford, é decisivo para criar uma atmosfera de tensão, preocupação e ansiedade no limiar do filme de terror, mas sem atravessar essa fronteira. Os cortes e os avanços e recuos no tempo instalam um ritmo que se articula com a ideia de que o protagonista tem o dom de prever o futuro – embora lhe resista e manifeste cepticismo em relação a premonições, ao contrário da mulher. Ao mesmo tempo, transmitem a sensação de que não só tudo é breve e instável como também qualquer momento de despreocupação pode subitamente transformar-se no seu contrário. A famosa sequência em que as imagens do casal na cama são entrecortadas por outras, em que as mesmas personagens já se vestem para sair, ilustra bem esta ideia. Outro elemento marcante é o carácter preponderante e inusitado do vermelho, uma cor que contrasta com os tons lúgubres das fachadas de Veneza e vai salpicando os planos, parecendo – desde a sequência inicial do filme, em que ocorre a morte da filha – dotada de uma agencialidade superior à das personagens. Aquele Inverno em Veneza é, além disso, uma representação visual do que é fazer o luto por alguém. No início, a personagem feminina parece mais frágil do que a masculina, mas vamos percebendo gradualmente que, na verdade, é a segunda que está em risco, apesar da sua atitude forte e sensata. Ironicamente, o maior perigo que John enfrenta está, não na cidade, mas dentro dele: a sua própria pulsão de morte e a vontade de se autopunir pela morte da filha obrigam-no a ir encontro do seu fim. Donald Sutherland, com uma expressão de perplexidade permanente, de quem não percebe o que lhe está a acontecer, é uma escolha essencial para o filme, como também virá a ser, pelos mesmos motivos, no Casanova de Fellini (1976). No fim de Aquele Inverno em Veneza, percebemos que os meandros e as entranhas fantasmagóricas da cidade correspondem afinal ao interior da cabeça do protagonista, por onde a dor vagueia, perdida, sem encontrar a saída, talvez até sem querer sair.
Outros filmes em Veneza: Summertime (David Lean, 1955); Eva
(Joseph Losey, 1962); Giro Turistico senza Guida (Susan Sontag, 1983).
23 de junho de 2024
Don Juan
16 de junho de 2024
A Quimera
Na primeira cena de A Quimera (Alice Rohrwacher, 2023), Arthur (Josh O’Connor) acorda num compartimento de comboio que partilha com umas personagens femininas de ar invulgar, que lhe lembram efígies etruscas. A suspeita sobre a vertente fantasmagórica do protagonista instala-se logo aqui. Não sabemos bem se Arthur está vivo; nunca está parado; não encaixa bem em lado nenhum. É um arqueólogo com um talento sobrenatural para identificar a localização de túmulos etruscos subterrâneos em que os mortos têm uma espécie de enxoval que os acompanhará na outra vida. Quando Arthur sente o mal-estar que indica a presença de um túmulo, a imagem vira-se ao contrário, como se os espectadores tivessem acesso ao seu modo de ver. As aventuras de Arthur com o grupo de ladrões de túmulos de que faz parte são entrecortadas por recordações de Beniamina, sua parceira desaparecida. A Quimera não é um filme narrativo. Depois da morte, não há narrativa, só ausência de coordenadas temporais. Se há histórias neste filme, terão de ser os espectadores a compô-las a partir do caos das conversas circunstanciais, das expressões das personagens, de pormenores inesperados, dos frescos desmaiados nas casas, das folhas caídas nas florestas, dos objectos roubados e das canções através das quais o grupo de ladrões se retrata. Em muitos momentos, sentimos uma espécie de sobrepovoamento dos planos, com um excesso de sons e detalhes. Rohrwacher compara Arthur com um herói mitológico, na medida em que, em vez de psicologia, tem um destino – talvez os espectadores que o acompanhem no seu imprevisível percurso em direcção às trevas possam aprender com ele alguma coisa sobre si próprios. Com ele, a realizadora leva a cabo o seu próprio percurso pelo cinema italiano e pela história do seu país, não hesitando em apropriar-se de certos elementos arqueológicos do cinema de Fellini, Rossellini e até Pasolini, para realizar um filme sombrio e absolutamente pessoal e único. Já se falou da possibilidade de A Quimera formar uma espécie de trilogia com os anteriores O País das Maravilhas (2014) e Feliz como Lázaro (2018), mas a realizadora prefere compará-los com o tríptico de um altar. Os três filmes têm em comum o retrato de um grupo ou família, que, à margem da sociedade, se entrega a actividades invulgares. O Cinéfilo Preguiçoso escreveu sobre os filmes anteriores de Rohrwacher em tom de elogio convicto, mas é preciso dizer que A Quimera se distingue pela riqueza visual e pela liberdade com que segue o percurso errático de Arthur e das outras personagens, entre as vicissitudes do quotidiano, as numerosas camadas de história e a memória cinéfila.