29 de maio de 2022

Last Night in Soho

Last Night in Soho (Edgar Wright, 2021) teve um percurso demasiado breve pelas salas de cinema portuguesas. Na altura, o Cinéfilo Preguiçoso não foi a tempo de ver, mas procurou-o agora no videoclube, por ter certas características e explorar alguns temas que costumam interessar-lhe. O filme acompanha Eloise (Thomasin McKenzie), uma rapariga de dezoito anos que se muda da Cornualha para Londres para estudar moda. Eloise é uma rapariga peculiar porque tem visões relacionadas com o passado (por exemplo, vê frequentemente a mãe, que se suicidou). O seu imaginário artístico é inspirado pelos relatos da mãe e da avó sobre Londres nos anos 60 e pelos discos dessa época que herdou. Quando se instala num quarto de uma casa do Soho, Eloise entra numa espécie de túnel temporal que lhe permite captar uma história trágica que se terá desenrolado nesse quarto e nessa zona, envolvendo uma jovem cantora a tentar singrar num meio profundamente misógino e corrupto. A ideia de que várias épocas podem coexistir no mesmo lugar permite a Wright explorar simultaneamente o Soho tal como é agora, o Soho como foi nos anos 60, e também uma versão imaginária do Soho que vai buscar aos filmes, fotografias e música dessa época. Entre as principais influências que Wright cita estão filmes como Peeping Tom (Michael Powell, 1960), O Criado (Joseph Losey, 1963), Blow-Up (Antonioni, 1965) e Repulsa (Roman Polanski, 1965). Neste último, temos precisamente uma rapariga em desintegração psicológica. Além destas influências directas, os espectadores recordam imediatamente realizadores como Brian De Palma, Kubrick e até Jordan Peele, ou as séries de Dennis Potter, como Lipstick On Your Collar. Ou seja, tal como Eloise capta fantasmas de outras épocas, também os espectadores captam fantasmas de outros filmes quando vêem Last Night in Soho. Wright recupera assim a relação histórica que o cinema tem com a actividade de captação de fantasmas. Visualmente, Last Night in Soho é um filme interessante (a ponto de se tornar decorativo), com uma excelente banda sonora, que joga com a memória cinéfila dos espectadores, graças também a um impressionante elenco que combina estrelas do passado (Terence Stamp, Rita Tushingham, Diana Rigg – que morreu pouco depois e teve aqui o seu último desempenho em filme) e do presente (Anya Taylor-Joy, Matt Smith). Infelizmente, no entanto, Wright não tem o pulso necessário para produzir uma síntese verdadeiramente pessoal a partir de todas estas influências e ideias tão fortes. Last Night in Soho oscila entre o drama psicológico, o filme de terror, a vontade de estilização e a ironia, sem se decidir por nenhuma destas correntes. Falha mais quando explora alguns lugares-comuns dos filmes de terror (aqueles fantasmas esverdeados e sem rosto que aparecem por todo o lado!...). Perto do fim, uma das personagens tem uma tirada longa que explica e normaliza toda a história, mas, se o filme tivesse sido realmente conseguido, esse relato teria sido escusado. Ainda assim, Last Night in Soho é um filme que muitos cinéfilos gostarão de ver, podendo interessar também a aficionados de Londres, dos anos 60 e de questões como a memória dos lugares.

22 de maio de 2022

Paris 13

O Cinéfilo Preguiçoso conhece o 13.º bairro de Paris e gosta dos livros de Adrian Tomine, por isso sentia bastante curiosidade de ver o filme Paris 13 (2021), de Jacques Audiard, que se passa nessa zona da cidade e adapta três histórias deste cartoonista norte-americano. A acção desenrola-se quase integralmente num quarteirão chamado "Les Olympiades", que é aliás o título original do filme. Este núcleo urbanístico é composto por arranha-céus de habitação baptizados com nomes alusivos ao movimento olímpico (México, Helsínquia ou Tóquio, por exemplo) e que, em vez de comunicarem directamente com a rua, estão unidos ao nível térreo por um pátio comum, onde existem lojas e serviços. Esta configuração, pouco comum em Paris, onde a regra é a dualidade simples entre o prédio e a rua, é bem aproveitada no filme. A vida de bairro parisiense, tão abundantemente explorada por realizadores como Rohmer, Truffaut e tantos outros, adquire aqui um carácter algo claustrofóbico: as Olympiades funcionam como uma cidade dentro da cidade grande e isso condiciona os encontros e as rotinas das personagens. Em contrapartida, este isolamento, combinado com a dimensão dos edifícios, transmite uma sensação de euforia associada ao anonimato, que equivale à possibilidade de construir uma identidade e, se necessário, refazer a própria vida. O filme, aliás, é marcado pelo tema do recomeço. As três personagens principais mudam de ocupação durante o filme, e, apesar de nenhuma destas mudanças ser descrita como particularmente traumatizante, estas circunstâncias compõem um pano de fundo de alteridade e instabilidade, que, além de ser tristemente actual, condiciona as acções das personagens, em particular os afastamentos e reencontros sucessivos das duas personagens principais – interpretações deveras conseguidas de Lucie Zhang e Makita Samba, muito justamente nomeados para os Césares. Os enredos em si não fogem à banalidade: funcionam melhor como base de narrativas gráficas breves do que como matéria para um argumento de longa-metragem. Nota-se o esforço dos argumentistas para dar mais espessura e carga dramática a situações que as dispensariam. Por exemplo, a relação entre Nora (Noémie Merlant) e a sua sósia (Jehnny Beth), vedeta de um chat pornográfico, que no livro de Tomine é o corolário breve de uma história de identidades trocadas, é prolongada um pouco artificialmente. Um dos méritos de Paris 13 é explorar as maneiras como os problemas da habitação e do trabalho afectam inevitavelmente a vida pessoal e amorosa. Esta faceta insere-se numa tradição, muito enraizada no cinema francês, de incorporação de temas sociológicos na ficção. Apesar de inegáveis insuficiências e desequilíbrios, Paris 13 é um filme que se vê com interesse e agrado. Duas menções finais para a notável banda sonora composta por Rone e para a presença de Céline Sciamma (que, aliás, tinha dirigido Noémie Merlant em 2019 no excelente Retrato de Rapariga em Chamas) na equipa de argumentistas.

15 de maio de 2022

A Vida depois de Yang

O Cinéfilo Preguiçoso gostou muito de Columbus (2017), a primeira longa-metragem de Kogonada, por isso ficou entusiasmado quando percebeu que ia estrear em sala A Vida depois de Yang (2021), segunda longa-metragem deste realizador. Este filme passa-se no futuro e adapta o conto de ficção científica “Saying Goodbye to Yang”, da antologia Children of the New World de Alexander Weinstein, sobre um casal que adoptou uma criança de origem chinesa e ao mesmo tempo adquiriu um andróide cultural para a acompanhar e transmitir informação sobre a sua cultura de origem. Esta situação permite explorar numerosos temas que já vimos bastante maltratados noutros filmes: ficção científica sobre robôs, com alguns ecos de Blade Runner (Ridley Scott, 1982); a adopção; o outro, o expatriado, o clone; o luto, a fragilidade da existência, a importância da construção de memórias partilhadas e o que acontece depois da morte. Em A Vida depois de Yang, no entanto, graças aos diálogos e aos percursos das personagens, estes assuntos não são tratados com superficialidade. É precisamente na multiplicidade temática que reside a riqueza do filme e das personagens, que, apesar de serem misteriosas, não são tratadas como meros mistérios a desvendar. A crítica associa Kogonada a Ozu e Kiarostami, sem dúvida influências importantes, que se notam sobretudo na atenção prestada ao espaço e no rigor da composição dos planos. No entanto, para esta segunda longa-metragem – que em inglês tem o título After Yang –, ele identifica como influência mais directa o filme After Life (1998), de Hirokazu Kore-eda, em que as personagens têm de escolher uma única recordação para guardar depois da morte. O andróide Yang distingue-se pelo facto de vir equipado com uma memória que todos os dias lhe permite reter uns poucos momentos que considera importantes. Esta memória, por um lado, torna-o um objecto de estudo interessante para o museu de tecnologia, na medida em que permite investigar aquilo a que os robôs atribuem importância; por outro, quando Yang deixa de funcionar, permite à família fazer o luto e conhecer melhor uma forma de vida próxima, mas distinta da humana. As personagens definem-se através das diferenças que têm em relação umas às outras, mas a diferença é tratada como mais-valia complementar, não como factor de ruído e perturbação. (A dada altura, uma personagem comenta: porque havia uma forma de vida diferente de desejar ser humana?) A repetição e os contrastes entre as memórias de Yang e dos pais são dos momentos mais invulgares deste filme – e talvez também aqueles em que há mais cinema, na medida em que em mais nenhum lado encontraríamos sequências assim. Ao mesmo tempo, chamam a atenção para o papel da memória quando se vê um filme, assumindo uma vertente metacinematográfica que sugere que a nossa humanidade é indissociável da tecnologia do cinema e do modo como vemos filmes. Se em Columbus tínhamos um filho que fazia o luto do pai percorrendo espaços em que prestava atenção a elementos arquitectónicos que costumam passar despercebidos, como se fossem invisíveis, em A Vida depois de Yang encontramos uma família que faz o luto de um filho ou irmão revisitando as coisas passageiras e frágeis que tinham ignorado ou praticamente esquecido. A segunda longa-metragem de Kogonada podia ter corrido bastante mal, mas é um filme contido e dotado de uma subtileza rara.

8 de maio de 2022

The Souvenir Part II

Quando o Cinéfilo Preguiçoso soube que o filme The Souvenir Part II (Joanna Hogg, 2021) iria passar no IndieLisboa, apressou-se a comprar bilhetes para a sessão, com receio de que esgotassem. A precaução foi inútil, pois o Grande Auditório da Culturgest estava quase vazio. Custa a perceber. Joanna Hogg afirmou numa entrevista que, na sua carreira, a transição da televisão para o cinema foi acompanhada pela decisão de fazer exactamente o que queria, em vez de se deixar condicionar por modas e convenções e de fazer o que outros lhe diziam. O díptico formado por The Souvenir (2019) e The Souvenir Part II, fortemente autobiográfico, pode ser visto como uma ilustração do percurso pessoal que a conduziu à maturidade e à liberdade criativa. Na primeira parte, assistimos aos primeiros passos de Julie (Honor Swinton Byrne) na escola de cinema e à sua relação com o misterioso e errático Anthony (Tom Burke). Na segunda, Julie divide-se entre a tentativa de compreender melhor quem era, afinal, o ex-namorado, que entretanto morreu de overdose, e a realização do filme de final de curso. Não há resoluções satisfatórias e tradicionais para estes problemas. Anthony permanece tão enigmático e opaco depois da morte como era em vida, apesar dos esforços de Julie para interrogar os seus próximos sobre a natureza dele e sobre os acontecimentos que precipitaram a sua morte. Quanto ao filme, objecto de críticas e cepticismo por parte dos professores e colegas durante o planeamento e rodagem, é concluído e exibido, mas nunca temos acesso a ele: em vez disso, vemos uma sequência entre o surreal e o onírico, que começa com uma referência pictórica ao quadro de Fragonard que dá o nome ao filme, e culmina na morte de Anthony simbolicamente perpetrada pela própria Julie. Esta sequência, não isenta de ingenuidade e exageros obviamente deliberados, pode ser vista como uma amostra do filme que a personagem realizaria se filmasse a vida tal como a vê enquanto artista, e não a vida como esta se desenrola, para parafrasearmos um diálogo que tem com os professores. Porém, as duas partes de The Souvenir também podem ser vistas como um fechar de círculo: ao fim de muitos anos, a realizadora que Hogg se tornou já adquiriu as ferramentas que lhe permitem realizar um filme autobiográfico, sem receio de explorar registos mais convencionais do que em obras anteriores, servindo-se de convenções narrativas mas sem ceder a estas. É impossível, em poucas linhas, fazer plena justiça a um filme tão rico, tão inteligente e tão cuidado do ponto de vista estético. Limitemo-nos a concluir reiterando que Hogg é uma das revelações mais notáveis do cinema mundial dos últimos dez ou quinze anos e que os poucos espectadores que passaram uma agradável noite de Maio dentro de uma sala de cinema obtiveram mais uma confirmação desta evidência. De certeza que não se arrependeram.
 
Outros filmes de Joanna Hogg no Cinéfilo Preguiçoso: Unrelated (2007), Archipelago (2010), Exhibition (2013), The Souvenir (2019).

1 de maio de 2022

Shirley

Disponível nos videoclubes das operadoras de telecomunicações, o filme Shirley (Josephine Decker, 2020) adapta um romance de Susan Scarf Merrell inspirado na vida da escritora americana Shirley Jackson (1916-1965), autora de obras-primas como The Haunting of Hill House (1959) e We Have Always Lived in the Castle (1962). Assim, apesar de acompanhar um período específico na vida desta escritora – depois da publicação do conto «The Lottery» (1948) e durante a escrita do romance Hangsaman (publicado em 1951) –, Shirley não é um simples biopic, mas sim a adaptação de uma ficção que explora a relação de Shirley Jackson e do marido – o crítico e professor universitário Stanley Edgar Hyman – com um casal mais jovem que fica hospedado na casa deles. A partir desta base, o filme, com apenas um ou outro momento mais duvidoso, capta bem não só o universo e a estética de Shirley Jackson, mas também a atmosfera de terror psicológico associada à dificuldade da criação literária. A realizadora e a argumentista, Sarah Gubbins, superam com competência o elemento que poderia ser mais problemático, no sentido em que facilmente poderia dar origem a exageros dramáticos: a própria figura de Shirley Jackson, associada a problemas ou temas como a agorafobia, a paranóia, a depressão, a ansiedade, a dependência de drogas, o excesso de peso e a prática de bruxaria, que ela mesma, aliás, explora literariamente. Seria fácil caricaturar uma personalidade deste género e já vimos Elizabeth Moss ter interpretações histriónicas e descontroladas (recorde-se, por exemplo, Her Smell, de Alex Ross Perry), mas neste filme a actriz capta eximiamente a presença da Shirley Jackson que imaginamos a partir dos livros e das fotografias que deixou. Como em Traições (Arnaud Desplechin, 2021), Shirley é um filme sobre um(a) escritor(a) em que a questão do adultério desempenha um papel importante. Note-se, no entanto, que a mudança do ponto de vista masculino para o feminino faz toda a diferença. Em Traições, um dos elementos que mais estranheza causam é termos uma protagonista que encarna uma fantasia masculina e o estereótipo literário da mulher adúltera entediada, deixando a sensação de que nenhuma mulher pensaria e falaria assim a não ser em livros escritos por homens. Em Shirley, quem escreve e quem vê é uma mulher; as traições do marido são um elemento entre outros numa vida em que há coisas mais importantes a fazer; e mesmo o marido (interpretado por Michael Stuhlbarg, que já vimos noutros papéis de professor universitário, em particular no magnífico A Serious Man, dos irmãos Coen, de 2009) é uma personagem mais complexa, não sendo reduzido a um simples mulherengo. Por outras palavras, o universo feminino não é totalmente deglutido pelo universo masculino, apesar de as agressões do segundo estarem em evidência. Shirley é um bom filme, que agradará tanto a fãs de Shirley Jackson como aos que nunca contactaram com a obra desta e gostam de ver filmes sobre escritores e o processo de criação literária. Além disso, por ser sobre uma escritora que adapta um romance escrito por uma mulher e também é realizado por uma mulher expressa pontos de vista que não costumam receber grande atenção.

Outros filmes com Elizabeth Moss no Cinéfilo Preguiçoso: Nós (Jordan Peele, 2019); Her Smell (Alex Ross Perry, 2018); O Quadrado (Ruben Östlund, 2017); Queen of Earth (Alex Ross Perry, 2015); Listen Up Philip (Alex Ross Perry, 2014).