A História do cinema está cheia de filmes sobre casais cuja separação temporária, na sequência de uma discussão, serve para reavaliarem a sua vida e, na maioria dos casos, se reconciliarem. Precedentes tão notáveis como L’Atalante (Jean Vigo, 1934) ou Eyes Wide Shut (Stanley Kubrick, 1999) não demoveram o francês Christophe Honoré de fazer mais um filme sobre este tema. Quarto 212 (2019), gravado na RTP1, começa com a descoberta, por parte de Richard (Benjamin Biolay), da infidelidade da mulher, Maria (Chiara Mastroianni). Depois de uma discussão, esta decide sair de casa e instalar-se no hotel do outro lado da rua. Durante a noite que passa no hotel, Maria é visitada por figuras do passado, incluindo numerosos amantes, o próprio marido muitos anos mais jovem, e Irène, a mulher que só então ela percebe ter sido o grande amor da vida dele. Os diálogos que daqui resultam ajudam Maria a reaproximar-se de Richard, que, entretanto, visivelmente angustiado pela solidão, deambula pelo apartamento visível através da janela do quarto de hotel. O aspecto mais original do filme consiste na contaminação da realidade por estas personagens que, até aí, o espectador se sentia no direito de considerar emanações da mente de Maria: o jovem Richard atravessa a rua e convive com a sua versão de meia-idade, Irène tenta persuadir o Richard mais velho a voltar para ela e construir a família com que sempre sonhou. Há que reconhecer arrojo a Honoré na maneira como mistura alegremente os planos temporais e como coloca em pé de igualdade a realidade no presente da narrativa e várias realidades alternativas. O filme, contudo, ressente-se por ter diálogos banais num tom próximo da comédia de vaudeville, assim como um final feliz pouco convincente, acabando por não resultar plenamente nem como comédia nem como eventual tentativa de aprofundar os mecanismos da paixão e da conjugalidade. Ao longo da sua carreira, Honoré tem demonstrado propensão para a ousadia formal e para subverter (embora sem a malícia quase iconoclasta de um François Ozon, seu contemporâneo) temas e abordagens tradicionais, sem que alguma vez tenha mostrado capacidade de realizar um filme verdadeiramente memorável. Embora mais interessante do que o frouxo Metamorfoses (último filme deste realizador visto pelo Cinéfilo Preguiçoso), Quarto 212 é mais um exemplo disso: longe do falhanço, mas aquém do que poderia ter sido.
31 de maio de 2020
24 de maio de 2020
A Portuguesa
O
filme A Portuguesa (2018), de Rita Azevedo Gomes, gravado recentemente
na RTP2, foi inspirado pelo belíssimo conto com o mesmo título do livro Três Mulheres, de Robert Musil. De acordo com a realizadora, Agustina
Bessa-Luís adaptou o texto de Musil produzindo um guião de sete ou oito
páginas, só com diálogo. Relendo o conto, facilmente se conclui que a
escritora, para o melhor e para o pior, destacou do texto tanto aquilo que nele
havia de Agustina como aquilo que em Agustina houve de Musil: alguns aforismos,
o interesse pelas relações de poder, certos contrastes entre homens e mulheres.
O enredo do filme é mínimo, girando em torno da relação, escassa em
acontecimentos, entre um nobre obcecado pela guerra e a sua mulher (a
Portuguesa), que espera por ele num castelo quase em ruínas no meio de nenhures.
A partir do conto e do guião, Rita Azevedo Gomes e o director de fotografia
Acácio de Almeida realizaram um trabalho admirável de convocação e organização
de imagens, muito mais importante do que o enredo de contornos vagos com que
estas se articulam. Sem dúvida, Rita Azevedo Gomes partilha com Manoel de
Oliveira (com quem trabalhou no filme Francisca, de 1981) e outros
grandes realizadores a ideia de que as palavras são apenas um elemento entre
outros no cinema, ao mesmo nível da banda de som, entre o canto dos pássaros. Isto
não significa desvalorizá-las, antes pelo contrário: a fé dogmática nos
elementos significantes (enredo, diálogo), predominante no cinema mais
convencional, é que reduz a dimensão verbal e as peripécias a meros veículos
esvaziados de interesse. Os actores, entre os quais se destaca Clara
Riedenstein (nossa conhecida por ter participado no filme John From, de
João Nicolau), funcionam mais como recursos pictóricos do que como seres de palavras.
As cores e os animais (cães, coelhos, veados, gatos, gansos, lobos, além de um
insecto misterioso que pica o Senhor von Ketten, marido da Portuguesa) são tão
ou mais importantes do que as figuras humanas, aproximando o cinema da pintura.
A Portuguesa é um filme lento e sereno em que todos os planos revelam um
trabalho minucioso que, no entanto, nunca produz resultados decorativos. Este
trabalho de composição, já visível (num registo muito diferente) em Correspondências
(2016), insere-se numa tendência, que percorre o cinema português moderno, de
exploração do plano, em que o estatismo da câmara é contrariado pela atenção aos
pormenores e à profundidade de campo: além de Oliveira, pense-se em João César
Monteiro ou José Álvaro Morais. Eventuais influências ou filiações à parte, A
Portuguesa reflecte o talento e a maturidade de uma realizadora muito interessante, que devia ser mais conhecida.
17 de maio de 2020
Ne Change Rien
Deve haver poucos países no mundo em que as fronteiras entre a representação e a canção sejam tão porosas como em França, onde a abundância de actores/actrizes que cantam e cantores/cantoras que representam é extraordinária. Jeanne Balibar, que encontrou tempo para dois álbuns, numerosas colaborações e uma digressão no meio de uma carreira de actriz muito preenchida e meritória, é exemplo disso. Em Ne Change Rien (2009), gravado num canal de televisão, Pedro Costa filma Balibar e os seus colaboradores em ensaios, em concertos e em pequenas improvisações de bastidores. Balibar mostra um talento vocal bastante limitado, que nem o trabalho centrado na dicção e na cadência compensa, ao contrário, por exemplo, de Jeanne Moreau, que soube encontrar estratégias para superar a falta de dotes para o canto e construir uma discografia francamente interessante. No entanto, este está longe de ser o problema principal de Ne Change Rien. A estratégia de Costa consiste apenas em captar momentos do trabalho colectivo, sem qualquer critério ou ideia de cinema claros. Se o objectivo era meramente documental, não se percebe por que razão escolheu esta cantora em vez de outras centenas de artistas muito mais interessantes. Se o objectivo era revelar alguma verdade escondida sobre o processo de criação artística, seria preciso outro tipo de investimento na planificação ou na montagem: compare-se com One + One (1968), de Godard, outro filme documental sobre o trabalho de grupo em torno da construção de um objecto musical. O que resulta desta indefinição são longos planos de Balibar, incapaz de ceder à tentação de “fazer de Balibar”, enquadramentos pseudo-sofisticados e uma iluminação de contraste fortíssimo, que denuncia a pretensão frustrada de fazer um filme visualmente ousado e artístico. A decepção torna-se ainda maior se nos lembrarmos da anterior, e brilhante, incursão de Costa no domínio do documentário: Onde Jaz o teu Sorriso? (2001), em que o cruzamento entre trabalho e criação (a montagem do filme Sicilia! por Huillet e Straub) era mostrado de forma muito mais subtil e cativante. É instrutivo comparar a “actuação” de Jeanne Balibar neste filme com o seu desempenho em Barbara (2017). Uma actriz será sempre uma actriz, e sair-se-á melhor quando o esforço de representação for assumido do que encerrando-se num registo supostamente naturalista e realista que se revela estéril.
10 de maio de 2020
A Flor da Felicidade
Até
têm passado na televisão alguns filmes interessantes que lhe escaparam quando estrearam
em sala, mas esta semana, para variar, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver em DVD
um filme recente. A Flor da Felicidade, de Jessica Hausner (2019), é recente ao
ponto de, inesperadamente, encontrarmos nele premonições sobre a actual
pandemia, apesar de ter sido escrito e realizado antes de ser possível saber o
que ia acontecer. Quem viu Amour Fou (2014), o filme anterior de Jessica
Hausner, reconhecerá o tom estranhamente neutro e desligado com que as
personagens de A Flor da Felicidade, à semelhança das marionetas de Kleist, parecem
encarar a vida. Mas enquanto em Amour Fou as personagens resistiam através
da ironia, em A Flor da Felicidade todas parecem entregar-se a uma felicidade
dúbia. O enredo gira em torno de um laboratório que, através da manipulação
genética, cria uma planta que exige cuidados e carinhos diários, mas de cuja
flor emana um aroma que inspira felicidade. Uma das personagens suspeita, no
entanto, de que o vírus usado como vector para a manipulação genética entrou em
mutação e começou a contagiar as pessoas que inalam o pólen, transformando-as
numa espécie de zombies felizes que tudo fazem para proteger as plantas, como “personagens
de uma peça de teatro em que interpretam o seu próprio papel”. O uso de
máscaras é recomendado, suscitando no espectador de 2020 uma sensação de déjà
vu. As suspeitas em relação ao vírus nunca são totalmente esclarecidas,
visto que só algumas personagens supostamente pouco fidedignas acreditam nessa
possibilidade e as mudanças que ocorrem nas outras podem ter outras explicações.
Para lá dos paralelos imprevistos com a situação actual, A Flor da Felicidade é
uma meditação irónica sobre a felicidade, sobre a autenticidade das emoções
humanas e sobre os efeitos de determinados fármacos como o Prozac. Além disso, aborda
de modo complexo as ambivalências da maternidade – ironicamente, apesar de não
ter disponibilidade para dar atenção ao seu próprio filho, a protagonista cria
uma planta que exige cuidados quase maternos. O ambiente asséptico recorda Safe
(1995), de Todd Haynes, outro filme muito referido a propósito desta
pandemia. Apesar de os acontecimentos de A Flor da Felicidade serem frios e
neutros, a ponto de parecerem inofensivos, esta atmosfera combina-se de modo
dissonante com algumas convenções do filme de terror, como uma banda sonora
arrepiante ou a expressão vazia das crianças. O Festival de Cannes chamou
a atenção para esta característica ao distinguir a interpretação absolutamente
contida e sem qualquer histrionismo de Emily Beecham com o prémio de melhor
actriz. Não se pode dizer que A Flor da Felicidade seja um filme comovente e
apaixonante, mas de certeza que não era esse o objectivo da realizadora. Neste
filme, Jessica Hausner faz muitas coisas com pouco, explorando de modo complexo
diferentes dimensões da natureza humana.
3 de maio de 2020
J'Accuse
Basear um filme em episódios históricos obriga quem o faz a escolhas complexas. Em J’Accuse (2019), visto esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, Roman Polanski debruça-se sobre o caso Dreyfus, que envolveu um oficial condenado erradamente por traição à pátria e que dividiu radicalmente a opinião pública francesa no final do século XIX, influenciando o mapa político e sociológico que vigorou em França ao longo das décadas seguintes. Ao passo que, em O Jovem Karl Marx (2017), a fama global do autor de O Capital permitia aos argumentistas darem-se ao luxo de explorar episódios menos conhecidos do seu percurso, sem perda de impacto, em J’Accuse lidamos com acontecimentos menos conhecidos e mais dificilmente reconhecíveis pelo público. Talvez por isso, Polanski optou por mostrar os detalhes mais marcantes deste episódio, sem perder tempo com derivas colaterais ou explorações psicológicas. A linha condutora é a investigação pessoal iniciada pelo coronel Picquart, que, depois de descobrir falhas clamorosas no processo que levou à condenação de Dreyfus, tenta, contra os conselhos e admoestações dos superiores, reabrir este processo. Mais do que personagem principal, é Picquart (numa interpretação excelente de Jean Dujardin, talvez mais merecedora de óscar do que a de O Artista) quem engendra a acção: sem ele, não haveria caso Dreyfus. Resulta daqui um filme objectivo, linear (apesar de numerosas analepses) e até algo frio, cujo tom de sobriedade marcial contrasta com algumas das obras anteriores de Polanski, marcadas pela exuberância visual e pelo histrionismo, como Carnage (2011) e La Vénus à la Fourrure (2013). A superabundância de pormenores e revelações, que traz à memória cinéfila Zodiac (o filme de 2007 que é um dos mais fascinantes relatos sobre uma investigação que o cinema nos ofereceu nos últimos tempos), torna-se, por vezes cansativa, e o filme ressente-se do esforço de explicar em pouco mais de duas horas, de forma compreensível, um caso tão intrincado. Talvez o aspecto mais conseguido de J’Accuse seja a exploração dos conceitos de honra e dever que atravessa o filme e culmina na notável cena final entre Dreyfus e Picquart: cumprir o dever equivale a seguir ordens ou a escutar a consciência? Reconheça-se ao filme a virtude de não escamotear a complexidade da questão, apesar de defender de modo claro e eloquente a segunda opção.
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