27 de fevereiro de 2022

Monsieur Klein

O Cinéfilo Preguiçoso continua a explorar a obra de Joseph Losey. Monsieur Klein (1976) passa-se em 1942, em Paris, durante a ocupação nazi. Robert Klein (Alain Delon), um negociante de arte que não hesita em tirar partido dos concidadãos judeus compelidos a vender ao desbarato os seus artigos de valor, descobre a existência de um homónimo de etnia judaica com quem é confundido. As diligências obstinadas para saber mais sobre o paradeiro e identidade deste outro «Monsieur Klein», a par dos esforços para justificar a sua posição em face das autoridades, precipitam-no numa espiral de acontecimentos que o levarão a sofrer o mesmo destino trágico de tantos milhares de franceses. O argumento é atribuído a Franco Solinas e Fernando Morandi, mas nele trabalharam também Costa-Gavras e o próprio Losey. É interessante constatar como um argumento a tantas mãos, e que conheceu várias versões, resultou tão coerente e eficaz, mesmo quando aparenta perder-se em linhas narrativas secundárias que reflectem eficazmente as tentativas tortuosas e obsessivas de Klein para alcançar a verdade. A mensagem principal de Monsieur Klein é clara: uma crítica contundente dirigida àqueles que ignoram ou se aproveitam da perseguição de que os outros são vítimas. Essa atitude, além de moralmente indefensável, vira-se frequentemente contra quem a assume, até porque o desenho da linha que divide os perseguidos dos que são poupados implica sempre um fundo de arbitrariedade. O filme mostra bem como, além de ser profundamente iníqua, a perseguição aos judeus era absurda porque se baseava em critérios étnicos empíricos e pouco científicos que faziam com que o destino de qualquer pessoa ficasse à mercê de um punhado de índices antropométricos ou de uma certidão de baptismo de um antepassado. Pode ainda argumentar-se que Klein sofre de uma pulsão autopunitiva: a maneira como se expõe às autoridades, a sua propensão para correr riscos na perseguição ao seu homónimo, a pressa com que se junta à multidão a caminho da deportação, ignorando a intervenção providencial do amigo que traz os documentos que o podem salvar, sugerem um desejo de aniquilação, ou de fusão com o seu duplo, de que resultará o desaparecimento de ambos, fazendo notar que quando desvalorizamos a humanidade de alguém aniquilamos também a nossa. Monsieur Klein é um filme que tem muitos pontos comuns com algumas das obras de Losey mais conhecidas dos anos 60, nomeadamente as que contam com a colaboração de Harold Pinter. O humor britânico e a mordacidade estão ausentes, mas mantém-se a coexistência de uma acção realista e de episódios desconcertantes e quase kafkianos que podem ser uma projecção da imaginação ou das pulsões da personagem principal. Outra característica comum é a maneira como o argumento inteligente e meticuloso é servido admiravelmente por uma realização formalmente ousada mas perfeitamente controlada, o que pode ajudar a perceber por que razão os filmes de Losey se mantêm actuais e continuam a ser apreciados. A concretização pictórica bem-sucedida de ideias narrativas nunca passará de moda e sobreviverá aos anos e às tendências.
 
Outros filmes de Joseph Losey no Cinéfilo Preguiçoso: Eva - Director's Cut (1962), O Criado (1963), Acidente (1967).

20 de fevereiro de 2022

The Card Counter | A Pior Pessoa do Mundo

Esta semana, o Cinéfilo Preguiçoso viu dois filmes – The Card Counter (Paul Schrader, 2021) e A Pior Pessoa do Mundo (Joachim Trier, 2021) – em que a narração em voz-off desempenha um papel interessante. O filme de Paul Schrader, sobre um ex-soldado (William Tell/Oscar Isaac) condenado por actos de tortura em Abu Ghraib que aprende a contar cartas e a jogar na prisão e depois se torna jogador profissional, é uma obra-prima de concisão e contenção. Na verdade, o jogo que mais interessa ao protagonista é aquele que começa com a aposta de redenção que faz quando vê uma oportunidade para salvar o filho de um companheiro de armas que, tal como ele, servira de bode expiatório para os abusos dos superiores. Também o Travis de Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976, com argumento de Paul Schrader) tinha uma motivação equivalente, ainda que mais abrangente: enquanto Travis queria salvar o mundo e via corrupção moral em toda a parte, William Tell já ficaria contente se salvasse uma pessoa que fosse. Esta personagem distingue-se ainda pelo facto de, apesar de ter feito parte da violência, ter conseguido sobreviver-lhe, ao contrário de figuras semelhantes de outros filmes. Narrando o registo que o protagonista faz das suas memórias, a voz-off acompanha o desenvolvimento de uma consciência e de uma vida interior que teve início na prisão. The Card Counter é um filme irrepreensível, embora não seja tão complexo ou ambicioso como No Coração da Escuridão (Paul Schrader, 2017). Sublinhe-se ainda a extraordinária contenção da cena do confronto final entre Tell e o homem que o transformou num torcionário, tão contrária aos hábitos de Schrader (basta recordar os finais de Taxi Driver e No Coração da Escuridão). Por sua vez, A Pior Pessoa do Mundo (2021), terceira parte de uma trilogia sobre Oslo, é o primeiro filme do realizador norueguês Joachim Trier que o Cinéfilo Preguiçoso vê. Apesar de não o ter convencido totalmente, despertou algum interesse pela restante obra deste autor. O filme segue uma história relativamente banal de uma crise, situação pela qual quase todos passamos na juventude ou depois, quando sentimos que precisamos de perceber o que queremos realmente fazer e como queremos viver. O factor distintivo aqui talvez seja a ironia intrigada com que a protagonista (Julie/Renate Reinsve, que por este papel recebeu o prémio de melhor actriz em Cannes) é acompanhada pelo realizador e pela narração em voz-off, assumida por uma actriz mais velha (Ine Jansen). O argumento é escrito pelo próprio Joachim Trier e por Eskil Vogt. Pelo facto de serem dois homens de meia-idade, um crítico já comentou que talvez não sejam as pessoas mais adequadas para compreender o ponto de vista de uma mulher de trinta anos –  e a voz-off, um pouco perdida no filme e não sabendo bem o que fazer das acções e decisões da protagonista, é um sintoma deste desajuste. Julie é tratada como se fosse relativamente misteriosa e opaca, quando, na realidade, é igual a tanta gente. A estranheza que esta perspectiva gera não é totalmente desinteressante, mas não só não é suficiente para redimir o filme da mediania, como talvez acabe também por o prejudicar. O título chama a atenção para uma questão – como é ser uma boa ou má pessoa? – que poderia ter sido mais bem desenvolvida. Com um enredo igualmente irónico sobre temas semelhantes, passou recentemente nas salas As Coisas que Dizemos, as Coisas que Fazemos (Emmanuel Mouret, 2020), que, apesar de não ter dado tanto que falar, é um filme muito melhor.

Outros filmes sobre jogo no Cinéfilo Preguiçoso: House of Games (David Mamet, 1987); Jogo da Alta-Roda (Aaron Sorkin, 2017).

13 de fevereiro de 2022

Someone's Watching Me! | Femme Fatale

O Cinéfilo Preguiçoso estava com saudades das double bills que a Cinemateca costuma programar aos sábados. A deste fim-de-semana emparelhou Someone's Watching Me! (1978), filme de John Carpenter realizado para a televisão, e Femme Fatale (2002), de Brian De Palma. O que une estes dois filmes é, por um lado, o uso abundante de estratégias narrativas e efeitos estilísticos típicos do thriller, em ambos os casos levado a cabo com inteligência e personalidade; e, por outro, o tema do voyeurismo, mais explícito no primeiro, mais estilizado e abstracto no segundo. Someone's Watching Me! centra-se numa realizadora de televisão recém-chegada a Los Angeles (Lauren Hutton) que começa a ser assediada por telefonemas e encomendas, enquanto a sua vida é vigiada por meio de um telescópio manipulado por um indivíduo misterioso, instalado no prédio vizinho. A filiação com Janela Indiscreta (1954), de Hitchcock, é óbvia, mas pode fazer-se também a aproximação com o delirante Hi, Mom! (1970), do próprio DePalma, onde o tema da vigilância de um prédio já era usado, com De Niro no papel de um observador mais inepto e ganancioso do que psicopata. O filme de Carpenter contém pormenores deliciosos: por exemplo, a certo ponto o voyeur oferece à vítima um telescópio, convidando-a a inverter os papéis, num requinte de perversidade que acaba por se voltar contra ele. Também Femme Fatale recicla muito do que os realizadores de série B, thrillers e heist movies criaram ao longo da história do cinema. Ao contrário do filme de Carpenter, que está bastante longe do género que o tornou famoso (embora a maneira como filma o prédio, quase como se fosse uma entidade maléfica, remeta para o cinema de terror), o de De Palma representa-o muito bem enquanto cineasta e ilustra a sua tendência para se inspirar nos autores que admira, por vezes no limite do pastiche. Femme Fatale começa por mostrar um roubo de jóias durante o Festival de Cannes, focando-se depois no destino de Laure (Rebecca Romijn-Stamos), que trai os restantes membros da quadrilha e fica com o saque. Os códigos tradicionais do género são explorados, manipulados e distorcidos por meio de uma montagem extremamente precisa e cerebral, sem esquecer algumas reviravoltas, num argumento sempre nos limites da autoparódia. À semelhança de outras obras de De Palma, em particular Snake Eyes (1998), Femme Fatale é um filme sobre o olhar humano e sobre a forma como a informação visual pode ser manipulada, sendo o realizador sempre o manipulador supremo. Nas mãos de muitos realizadores contemporâneos, este poder de manipulação é esbanjado em tentativas, levadas a patamares entediantes, de contrariar sistematicamente as expectativas do espectador. Tanto De Palma como Carpenter mostram inteligência e respeito suficientes pelos espectadores e pela memória cinéfila para não permitirem que estes jogos redundem na missão de provarem que são mais espertos do que quem assiste ao filme. Por estes motivos, o Cinéfilo Preguiçoso divertiu-se com esta double bill e ficará atento às próximas.
 
Outros filmes de Brian De Palma no Cinéfilo Preguiçoso: O Fantasma do Paraíso (1974), Blow Out (1981).

6 de fevereiro de 2022

A Filha Perdida

Entre os livros de Elena Ferrante, o Cinéfilo Preguiçoso prefere as novelas ou romances mais curtos (em Portugal, reunidos no volume Crónicas do Mal de Amor da Relógio D’Água) à tetralogia de Nápoles, por serem textos densos e concentrados, com uma intensidade rara. Mas, como nem sempre os livros de que gostamos dão origem a adaptações cinematográficas interessantes, tentou moderar as expectativas em relação a A Filha Perdida (Maggie Gyllenhaal, 2021). Quando contactada por Maggie Gyllenhaal, a própria Ferrante lhe terá sugerido que adaptasse o livro (traduzido em Portugal por Margarida Periquito com o título A Filha Obscura) e realizasse o filme. É bem possível que tenha sido uma opção decisiva, tendo em conta que se trata de um texto com uma complexidade que facilmente poderia ser escamoteada por alguém que o transformasse numa história bem contada sobre uma mulher supostamente egoísta. A adaptação de Gyllenhaal tem o enorme mérito de prestar atenção aos pormenores menos narrativos (um regador de brincar, uma cigarra na almofada, um chapéu grande, um alfinete de cabelo, etc.) sem os tornar decorativos e sem cair na tentação de ser demasiado explicativa e de explorar desnecessariamente as motivações psicológicas das personagens. (Na verdade, os momentos menos conseguidos de A Filha Perdida talvez sejam os flashbacks da protagonista que culminam na decisão de se afastar das filhas pequenas, na medida em que são mais convencionais no formato e podem ser entendidos como justificativos.) Mesmo a figura da boneca, uma espécie de corporização da relação de quase indistinção entre mães e filhas, é muito mais do que isso tanto no livro como no filme, pelo facto de não ser tratada como mero símbolo, mas antes como um objecto físico, incómodo, refractário a leituras óbvias. Outro elemento essencial para a qualidade do filme de Gyllenhaal foi, sem dúvida nenhuma, a escolha de uma actriz como Olivia Colman para o papel de protagonista. Ferrante e Gyllenhaal não só trabalham uma personagem evitada por muitos – a de uma mulher com sentimentos ambivalentes em relação à maternidade – como também fazem notar que muitas mulheres são assim. (Julianne Moore interpreta uma figura próxima em As Horas  realizado por Stephen Daldry em 2002, adaptando um romance de Michael Cunningham –, mas não tem uma personagem tão rica.) Combinando muitas mulheres numa só, é possível até que a Leda de Olivia Colman tenha mais cambiantes do que a protagonista de Ferrante. Colman consegue a proeza de compor uma personagem com as características que aprendemos a condenar nas mulheres e, mesmo assim, suscitar empatia e identificação. Por todos estes motivos, A Filha Perdida é um excelente filme com personagens e temas poucas vezes tratados no cinema com a complexidade que merecem, mas também uma adaptação cinematográfica à altura do texto de partida. Uma menção final para a notável banda sonora de Dickon Hinchliffe (ex-Tindersticks) e para o acolhimento favorável que este filme, estreia de Maggie Gyllenhaal na realização, está a receber, traduzido em numerosos prémios, entre os quais o de melhor argumento no último Festival de Veneza.