27 de novembro de 2023
Os 400 Golpes do Cinéfilo Preguiçoso
26 de novembro de 2023
Céu em Chamas
19 de novembro de 2023
O Assassino
Em O Assassino (David Fincher, 2023), temos uma personagem nitidamente fincheriana, mas que se descobre protagonista de um enredo irónico, baseado numa banda desenhada francesa (escrita por Alexis “Matz” Nolent e ilustrada por Luc Jacamon), com laivos jarmuschianos, relacionados com o acaso e os limites do controlo. Sobre o protagonista (interpretado por Michael Fassbender), que foi comparado com a personagem de Alain Delon em O Samurai (Jean-Pierre Melville, 1967), sabemos que é um homem que gosta de se confundir com um turista alemão, com várias identidades mas sem grande psicologia, e que optimiza todos os seus passos e rotinas para ser uma máquina de matar eficiente e cumprir o dever. No início do filme, num misto de teledisco, anúncio publicitário e Janela Indiscreta, seguimos o seu olhar, a música que escuta e as suas palavras em voz-off, enquanto vigia um prédio e uma rua em Paris. O Assassino raramente fala com outras personagens, mas tem um monólogo interior obsessivo e repetitivo que, com as canções dos Smiths que ouve constantemente, o ajuda a concentrar-se nas tarefas a desempenhar. Depois de cometer um erro, no entanto, o seu discurso deixa de ser congruente com os acontecimentos que vemos desenrolar-se, apesar de ele continuar a repetir o conjunto de regras pelas quais rege o seu comportamento. Seguimos o seu percurso vertiginoso por várias cidades dos Estados Unidos e pela República Dominicana, onde tem residência e até uma companheira. Neste percurso, tenta regressar ao ponto de partida e retomar as rotinas normais da sua profissão, para poder voltar a ser uma personagem tipicamente fincheriana. Dividido em capítulos e com uma banda sonora original sinistra dos excelentes Trent Reznor e Atticus Ross, O Assassino tem um pouco da literariedade de Se7en (1995), um pouco da ironia de Clube de Combate (1999), um pouco do carácter obsessivo e do interesse pela investigação das personagens de Zodiac (2007) e Millennium (2011), e um pouco da tensão verbal de A Rede Social (2010). Ao mesmo tempo, mostra o avesso destes filmes, na medida em que assume uma vertente metacinematográfica em que o próprio Fincher parece sugerir que, por muito perfeccionistas que os realizadores e os assassinos sejam, durante a rodagem ou a execução há coisas que correm mal e os filmes podem ser simplesmente uma correria para avaliar e corrigir estas situações. Em muitos aspectos, aliás, é possível que O Assassino seja o filme mais conceptual deste realizador, apesar de aparentemente acompanhar apenas a história de um profissional competente, que se considera uma personagem menor. Seria também interessante estudar a maneira como a longa experiência de Fincher como realizador de telediscos influenciou a estética de O Assassino, que combina a plasticidade imediata e a superficialidade inerente a este meio com a vertente reflexiva sobre a construção de um filme e a tensão entre o controlo e a inevitabilidade dos imprevistos.
12 de novembro de 2023
L'Amitié
5 de novembro de 2023
Uma Mulher Sob Influência
Em Uma Mulher Sob Influência (John Cassavetes, 1974), temos um verdadeiro estudo da doença mental – no seu contexto e nos seus sinais, sintomas e efeitos. Mabel (Gena Rowlands) e Nick Longhetti (Peter Falk) interpretam um casal de classe operária vulnerável a este problema, no seio de uma família disfuncional. O mais interessante neste filme é o modo como Cassavetes revela e explora a dificuldade de definir fronteiras nítidas neste género de doenças. Sem dúvida, há uma protagonista, mas toda a família faz parte do problema e é afectada por ele, acabando por replicar e ampliar, com as suas próprias acções e reacções, o comportamento da personagem principal. Nem sempre é possível distinguir as características da doença dos traços das personagens; tão-pouco são imediatamente nítidas as distinções entre comportamentos simplesmente excêntricos e comportamentos perigosos. A doença mental é retratada como uma intensificação das características mais idiossincráticas de cada personagem e, portanto, também intensifica a teatralidade de todas as situações. Há quem se queixe do dramatismo excessivo deste filme e o descreva como uma experiência violenta (Richard Dreyfuss terá dito que, quando chegou a casa, vindo do cinema, teve de ir vomitar – comentário que aumentou a afluência do público), mas, se sentimos esta teatralidade como excessiva e artificial, isso também se deve ao facto de Cassavetes não aceitar nenhuma das convenções narrativas e cinematográficas que costumam definir a verosimilhança. Em Uma Mulher Sob Influência, o desenrolar da acção é indissociável de todos os trejeitos, tiques, esgares, maneirismos, gritos, gestos bruscos e contorções físicas e emocionais das personagens. E, na verdade, esta teatralidade excessiva é típica de muitas doenças mentais; portanto, pode-se dizer que o realizador abdica das convenções do realismo para se aproximar da realidade. O talento de Gena Rowlands é evidente na capacidade de construir uma personagem em que reconhecemos imediatamente pessoas com este tipo de doença – e não só mulheres. (Aliás, já alguém disse que, de certa forma, é Gena Rowlands, não o actor principal, quem costuma desempenhar o papel mais próximo do próprio Cassavetes nos filmes deste realizador.) O fim de Uma Mulher Sob Influência é particularmente interessante, na medida em que explora a abolição de mais uma fronteira: quando ficam finalmente sozinhos e fecham a porta envidraçada através da qual continuamos a observá-los, os protagonistas parecem transformar-se gradualmente nos actores, enquanto estes, apaziguados e perdendo aos poucos a tensão dos papéis que desempenham, arrumam o quarto, que assume lentamente o estatuto de cenário. Este final chama a atenção para o facto de tudo ter sido uma representação, e sublinha que desempenhamos papéis não só no cinema, mas também na vida, ao mesmo tempo que lembra que pode ser difícil simplesmente “sermos nós mesmos”, como Nick incita Mabel a fazer neste filme, tal como, em Rostos (John Cassavetes, 1968), também Richard incitara Jeannie a fazer.
Outros filmes de John Cassavetes no Cinéfilo Preguiçoso: Sombras (1959); Rostos (1968).
29 de outubro de 2023
Rostos
22 de outubro de 2023
Sombras
Esta semana, a título excepcional, publicamos o texto escrito para a apresentação do filme Sombras (John Cassavetes, 1959) no Close-up, Observatório de Cinema de 2023. Muito obrigada a Vítor Ribeiro pelo simpático convite para estarmos presentes.
Como se apresenta um filme? Os filmes não precisam necessariamente de apresentação. Até podemos vê-los por acaso, entrando simplesmente num cinema e escolhendo um título sem sabermos qual é o tema nem quem é o realizador, ou, fazendo zapping na televisão, quando paramos se as imagens ou os diálogos nos chamam a atenção.
Um filme que se torna importante para nós e que não esquecemos conquista-nos independentemente do realizador ou até das histórias que conta. As imagens atraem-nos, os diálogos parecem-nos logo estranhamente próximos ou distantes: temos a sensação de que já tivemos aquelas conversas com alguém, ou então que nunca ninguém nos diria aquelas coisas (e ficamos tristes ou contentes por esse motivo).
Quando vemos Sombras, de John Cassavetes, sentimo-nos imediatamente próximos das personagens: três irmãos ligados às artes que moram juntos num pequeno apartamento em Nova Iorque. Dois irmãos são músicos (um cantor e um trompetista), mas ainda não estão bem instalados na carreira, e têm uma irmã mais nova, que ainda não descobriu a sua vocação (a dada altura, para grande consternação de um amigo, escreve um conto sobre uma rapariga que beija um desconhecido na rua, portanto pode vir a ser escritora, mas não sabe ainda, também pode vir a ser pintora).
Não conseguimos imaginar as personagens do filme sem as suas preocupações artísticas. As conversas que têm são sobre arte, definem-se com a ligação que têm à arte. Ao mesmo tempo, têm os pés bem assentes na terra, falam de problemas concretos, relacionados com a carreira, o trabalho e o dinheiro. E nós identificamo-nos com estas preocupações. Podíamos ter conversas parecidas.
De onde vem esta sensação de vermos pessoas como nós a viverem as suas vidas?
Para começar, Sombras é um filme sem o peso das convenções do cinema americano da mesma época: dramatismo da história, narrativa clássica, grandiloquência, grandes acontecimentos e grandes afirmações. Cassavetes é uma espécie de óvni, embora o cinema americano independente das décadas seguintes se tenha desenvolvido a partir da obra dele. Para encontrarmos filmes com uma estética mais próxima, talvez tenhamos de procurar na Nouvelle Vague: O Acossado, de Godard, estreou em 1960. (Se quisermos um equivalente português próximo, recordamos que, em 1964, o filme Belarmino, de Fernando Lopes, também segue o protagonista pelas ruas da cidade.)
É o primeiro filme de Cassavetes – que chegou a dizer que, dentro da sua obra, era o seu preferido. Quando realizou Sombras, tinha 30 anos, era actor e dava aulas a aspirantes a actores, encorajando-os a improvisar.
Nesta época, cultivava-se muito a técnica de representação do Método, que era tudo menos improvisação. Os actores faziam um trabalho muito sério de introspecção para compreenderem a história, as motivações e as emoções das personagens a partir das suas próprias experiências. Cassavetes, contudo, preferia que fossem os próprios actores a desenvolver as personagens através das suas próprias palavras e acções. Sombras surgiu a partir dos exercícios de improvisação dos actores nas aulas de Cassavetes.
Ainda assim, convém notar que o filme que vamos ver a seguir assenta num guião bem trabalhado. O realizador filmou uma primeira versão mais improvisada, mas quando a viu, decidiu aperfeiçoar o guião para o tornar mais coerente. O que vamos ver é uma versão aperfeiçoada, que foi desenvolvida a partir da improvisação, mas não é totalmente improvisada.
O título do filme dá um pouco que pensar. Será que as sombras são as tonalidades de pele que distinguem fisicamente os três irmãos, entre o negro, o castanho e o branco? Com personagens assim, facilmente o racismo poderia ser o tema principal do filme – e, se Sombras tivesse sido realizado em 2023, por outro realizador, talvez fosse. No filme de Cassavetes, no entanto, a cor da pele das personagens é apenas um assunto entre outros, muito mais interessantes. Há um imbróglio com um namorado da personagem feminina, quando este percebe que ela afinal não é branca, apesar de ter pele branca (vá-se lá saber o que quer dizer «ser branco»!), mas a vida continua.
Para vermos a diferença entre Sombras e outros filmes americanos da mesma época, basta dizer que no mesmo ano – 1959 – estreou um filme extraordinário de Douglas Sirk, intitulado Imitação da Vida, em que há uma situação parecida: uma personagem feminina de pele branca, mas com mãe negra. No filme de Douglas Sirk, esta questão tem consequências trágicas e grande impacto melodramático. Em Sombras, as coisas continuam como antes.
Cassavetes explora bem a questão do racismo, mas está mais interessado na vida das personagens. O que mais lhe interessa é o modo como os percursos físicos das personagens pelas ruas, passando por bares, cafés, cinemas, museus, apartamentos pequenos e parques, se articulam com os modos como elas se entendem e descrevem.
A irmã mais nova, Lelia – interpretada pela actriz Lelia Goldoni, que morreu em Julho deste ano –, é particularmente cativante. Vemo-la a experimentar e rejeitar os diferentes papéis que a sociedade lhe atribui. Por exemplo, procura-se entre as mulheres nos cartazes dos cinemas, mas não se encontra. É uma personagem feminina completamente livre, que pensa pela própria cabeça e testa as ideias na realidade, apesar dos constrangimentos que querem impor-lhe e das coisas que lhe dizem que deve sentir. (Diga-se de passagem, aliás, que Cassavetes, ao contrário de vários realizadores importantes da geração seguinte, como Scorsese, Spielberg ou Coppola, sabia filmar mulheres.)
Lelia, como as outras personagens de Sombras, não tem uma identidade fixa. (Não só não é bem branca como, a dada altura, a acusam de ter um comportamento masculino.) Neste filme, a identidade das personagens é dinâmica e depende das interacções que têm com as outras e com os espaços. Muitos planos de Sombras têm rostos sobrepostos, corpos em movimento, pessoas muito próximas umas das outras em espaços minúsculos, trocas de palavras, discussões, toques, reconciliações. As personagens correm, perseguem-se, fogem, dançam e caem. Por isso, será que as Sombras do título também podem ser associadas às simples silhuetas do teatro de sombras, em que se conta histórias a partir das imagens e movimentos criados por estes bonecos?
Para terminar, quero destacar uma sequência muito bonita em que, num museu ao ar livre, as personagens partilham o espaço com várias esculturas, sendo ao mesmo tempo parecidas com elas, mas muito diferentes delas. Aproveito esta sequência para recordar o escritor Italo Calvino, de quem no dia 15 de Outubro se comemorou o centenário do nascimento. No livro Seis Propostas para o Próximo Milénio (trad. José Colaço Barreiros), Calvino lembra que, se não queremos petrificar (se não queremos transformar-nos nas esculturas ou nas imagens dos cartazes de cinema que vemos neste filme), temos de resistir ao peso, à inércia e à opacidade do mundo – porque há alturas em que só percebemos a complexidade das coisas se as dissolvermos nos seus elementos mais essenciais. É isso que Cassavetes faz, mostrando que muitos elementos que nos pareciam imprescindíveis no cinema afinal podem ser dispensáveis.