Gravado
na RTP2, O Jovem Karl Marx (Raoul Peck, 2017) propõe-nos um retrato do
revolucionário enquanto jovem, nos primeiros tempos de amizade e colaboração
com Friedrich Engels, pouco antes de começar a escrever O Capital. Do
ponto de vista narrativo, o argumento, assinado pelo próprio realizador em
colaboração com Pascal Bonitzer, parece bastante convencional. Distingue-se, no
entanto, por abordar uma fase incipiente do percurso de Karl Marx (entre os
vinte e trinta anos de idade) e, dentro desta, a vertente mais quotidiana,
banal e comezinha da sua existência: as dificuldades de sobrevivência, a
incerteza sobre as próprias capacidades, a falta de energia, as quezílias, as
discordâncias em relação a outros filósofos (Hegel, Proudhon) ou pretensos
profetas resistentes à teoria (Weitling), as perseguições e algumas pequenas
vitórias. Uma das qualidades deste filme que raramente entusiasma é mostrar não
só que é possível filmar a História acompanhando personagens credíveis e
humanas, mas também que personagens credíveis e humanas podem ter impacto na
História e nas estruturas sociais. Esta opção, privilegiando um processo de
formação e opondo-se diametralmente à História que se concentra apenas em
grandes feitos e supostos heróis, permite ao filme explorar também a medida em que
um temperamento pode determinar um destino. O Jovem Karl Marx acompanha
o processo de definição de um carácter que questiona e problematiza (“crítica
da crítica crítica”, além de ser o subtítulo da obra A Sagrada Família, é
a descrição jocosa, mas adequada, que se aplica à actividade de Marx e Engels),
sugerindo que todas as dificuldades que o protagonista terá de enfrentar, mas
também a sua capacidade de transformação do universo em que embate, já estão
contidas no seu temperamento. O filme termina com Marx a queixar-se: está
cansado, farto de panfletos e manifestos, sem energia para escrever um livro
sólido que dê forma concreta ao seu pensamento, mas desejoso de o fazer. Não
precisa de narrar o futuro do protagonista porque tudo o que já explorou sobre
ele anuncia o que virá a acontecer. Neste aspecto, ao jogar com as expectativas
do espectador, que sabe que aquele homem desmotivado será um dos pensadores
mais influentes do século XIX e irá marcar a história dos séculos seguintes, é
um filme que acaba no momento certo, mas falta-lhe investimento formal para ser
um objecto cinematograficamente interessante. Talvez se esperasse um pouco mais
de uma colaboração entre Raoul Peck, realizador do irregular mas muito
celebrado I Am Not Your Negro (2016), e de Pascal Bonitzer, com uma
carreira muito rica enquanto argumentista (por exemplo de Jacques Rivette),
realizador e crítico.
26 de abril de 2020
19 de abril de 2020
Sideways
Sem acesso às salas de cinema, o Cinéfilo Preguiçoso aproveita a oportunidade para ver filmes que vão passando pelos canais de televisão. Sideways (2004), baseado no romance de Rex Pickett com o mesmo título, contribuiu para consolidar a reputação de Alexander Payne como um dos mais promissores entre a geração de realizadores norte-americanos nascidos nos anos 60 e activos desde os anos 90 – a par, por exemplo, de Noah Baumbach e Wes Anderson. O argumento (premiado com um Óscar) centra-se em dois amigos – um professor de Inglês com pretensões a escritor e um actor – que, na semana que precede o casamento do segundo, fazem uma excursão a uma região vinícola da Califórnia. Aquilo que fora planeado como uma espécie de despedida de solteiro descontraída transforma-se numa sucessão de pequenas aventuras tragicómicas e encontros amorosos, devido à inquietação do actor perante a iminência do matrimónio e à sua vontade de aproveitar as liberdades da vida de solteiro enquanto pode. Sideways percorre um catálogo de temas e lugares-comuns cinematográficos que qualquer espectador reconhecerá: a amizade masculina que sai reforçada de todas as provações apesar da diferença de temperamentos, o road movie, as atribulações do escritor falhado, a crise de meia-idade, um casamento ameaçado pelo pânico de um dos noivos. Não se pode dizer que estes temas sejam aqui explorados de forma particularmente inovadora. Mais do que pela originalidade, este filme distingue-se pelo argumento fluido e eficaz, pela maneira inteligente como explora o espaço (a liberdade da auto-estrada coexiste com a claustrofobia das pequenas estradas secundárias e do motel a que os dois amigos regressam sempre no final de cada dia) e pelas interpretações. Paul Giamatti é, como seria de esperar, soberbo no papel do aspirante a escritor; Virginia Madsen e Sandra Oh (que mais tarde alcançaria fama mundial na série Anatomia de Grey) distinguem-se também pela positiva. Sideways é fértil em metáforas sobre vinho, ligadas ao esforço humano necessário para produzir uma garrafa desta bebida, ao processo de envelhecimento e à necessidade de agarrar as oportunidades da vida sem esperar por uma ocasião ideal que pode nunca chegar; estas metáforas são relativamente interessantes em si, mas algumas vezes parecem um pouco forçadas. Mais do que as alegorias enológicas, talvez o aspecto que acaba por valorizar o filme seja a maneira como a personagem principal, deprimida pela sucessão de infortúnios, é salva (quase diríamos literalmente) pelo manuscrito do seu romance: apesar de rejeitado pela editora, o livro é lido e admirado pela empregada de mesa que ele tentara desastradamente seduzir. A possibilidade de a literatura conduzir a uma conexão emocional capaz de mudar vidas, inalcançável por outra via, pode ser também um lugar-comum, mas em Sideways esta possibilidade é sugerida com sobriedade e uma saudável equidistância entre o cinismo que parece a ponto de tomar conta da personagem e a possibilidade de um final feliz.
5 de abril de 2020
O Parque
Visto
em DVD, O Parque (2016), de Damien Manivel, conta uma história do tempo
em que se podia marcar um encontro num parque e aí passar uma tarde sem se
correr risco de contágio. Na conversa de circunstância desprovida de fluência e
no carácter convencional dos gestos dos protagonistas, a banalidade desta
primeira saída de um rapaz e de uma rapariga é quase anti-rohmeriana, em
contraste com os percursos do protagonista de Un jeune poète (2014), o
filme de Manivel imediatamente anterior a este. A própria aparência física e a juventude
dos protagonistas remetem mais para a tradição do filme francês sobre paixões
da adolescência do que para Rohmer. Acontece, no entanto, que, antes do fim da
tarde, a partida abrupta do rapaz muda tudo: a banalidade e as convenções dos
filmes sobre a juventude desaparecem com o ocaso. À medida que a noite cai, a
rapariga, que ficou sentada no relvado, troca com o rapaz uma série de
mensagens em que há uma revelação inesperada. À noite, o parque, a relação
incipiente das personagens e o filme parecem muito diferentes, recordando o
cinema de Apichatpong Weerasethakul, pela fusão entre o real e o sobrenatural, ou
um filme como O Desconhecido do Lago (2013), de Alain Guiraudie, pelo
ambiente crepuscular que se instala, remetendo para o cinema de terror ou para
certos contos tradicionais infantis. O carácter convencional dos gestos da
tarde é substituído por uma coreografia estranha da rapariga abandonada (recorde-se que
Manivel começou a carreira artística como bailarino de dança contemporânea), em
que esta, depois de exprimir o desejo de voltar atrás no tempo, percorre o
parque literalmente às arrecuas, para consternação do vigilante nocturno, que
rapidamente é sugado pela imaginação e pelo desespero desta personagem.
Quem nunca se perguntou sobre o que acontece em certos lugares públicos
(parques, museus, bibliotecas) quando os visitantes não estão (ou não deviam
estar) lá? Entre outros sons e imagens difíceis de decifrar na escuridão, há
uma coruja branca e a rapariga e o vigilante atravessam de barco uma espécie de
lago de esquecimento. Nesta secção de O Parque, depois do conteúdo ténue dos
diálogos da primeira metade, as palavras desaparecem quase completamente. O
filme termina na manhã do dia seguinte: a rapariga acorda no parque e regressa
a casa. O espaço público parece tornar-se novamente inócuo e familiar, mas
tanto a personagem como os espectadores deste filme extraordinário sabem que
não é assim.
Na
próxima semana não haverá Cinéfilo Preguiçoso, mas, como de costume, voltaremos
a seguir à Páscoa. Boa pausa para todos.
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